sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Respostas as objeções formuladas pelos céticos - Os 'tropói' de Aenesidemus...

D - Segundo Aenesidemus em nome de Pirro, "A realidade varia segundo as relações locais.". Esta proposição é assim exposta por Sexto: "A mesma torre parece ser retangular a curta distância e arredondada de longe. A lua parece ser liza quando contemplada a distância, no entanto, caso observe-mo-la com mais atenção e cuidado, percebemos que é repleta de crateras."

Descartes: "Tudo quanto até hoje aprendi e tive como seguro e certo; foi dos sentidos que eu aprendi ou por intermédio deles; assim percebi diversas vezes que os sentidos nos enganavam; e aconselha-nos a prudência que jamais nos fiemos inteiramente naqueles que uma vez apenas nos iludiram... Assim torres que de longe se me afiguravam como redondas vistas de perto eram de fato quadradas e colossos colocados sobre os mais altos cimos me pareciam minúsculas estatuetas  quando vistas cá de baixo; e fui assim depreendendo, numa infinidade de casos, a falsidade dos juízos que se fundavam no testemunho exterior dos sentidos..." in 'Meditações sobre a Filosofia primeira' 

M - Trata-se aqui dum argumento já classicamente explorado pelos céticos - com relação a vara posta num balde com água e quanto ao aparente movimento de rotação da terra em torno do sol - e encarado como uma espécie de carta ou trunfo escondido debaixo da manga...

Na boca ou na pena do cético porém, sabe esta argumentação um travo de hipocrisia. Digamos que ao argumentar desta forma o cético forja um 'sofisma' ou que argumenta de forma capiciosa tendo em vista escamotear a realidade e ludibriar aqueles que lhe dão trela.

Pois toda operação consiste em opor uma 'aparência' observada a partir de determinada distância, a uma 'realidade' percebida a partir duma distância menor e portanto com maior nitidez...

Todavia com o objetivo de refutar-nos entra o adversário numa arapuca e refuta-se a sí mesmo opondo uma 'aparência de realidade' vista ou percebida de longe a uma 'realidade' captada em condições adequadas.

Oposição que do ponto de vista do ceticismo jamais deveria existir uma vez que tudo, absolutamente tudo não passa de aparência. Sendo assim não há como separar a aparência da realidade; sem admitir a existência de um conhecimento real e consistente que se oponha a aparência. Aqui separação e/ou oposição entre o percebido e o sabido só seriam válidos do ponto de vista dogmático...

Pois sabendo que nossas sensações em certas circunstâncias não são reais, teríamos de admitir, forçosamente, que nosso saber é real.

Afinal se somos capazes de superar as limitações, dos sentidos,  do tempo e do espaço por meio do esforço e de atingir a verdade corrigindo as impressões o ceticismo incorre em falsidade patente.

Feita a ressalva acima admitiremos que por vezes, em determinadas circunstâncias, a percepção/sensação não corresponde perfeitamente a realidade ou ao objeto. Advertindo no entanto que não se trata duma regra geral e sim, como diríamos, de exceções feitas a regra ou de situações bastante raras.

E rebatemos argumento de duas maneiras:


  1. Do fato segundo o qual por vezes nossos sentidos incorrem em erro não podemos generalizar e suster que estejam sempre e invencivelmente equivocados.
          Assim Descartes: "Mas talvez se suceda que, não obstante os sentidos nos enganarem diversas vezes no que toca especialmente aos objetos que se encontram a uma maior distância, coisas haja, a respeito das quais, sem embargo, que não seja lá muito razoável duvidar, se bem que as conheçamos por meio dos sentidos. Por exemplo: que eu estou aqui, sentado à lareira, com meu roupão, tendo entre as mãos esta folha de papel, e de coisas parecidas. E como poderia contestar que estas mãos e este corpo sejam propriamente meus sem associar-me a certos loucos, os quais por terem as mentes tão perturbadas asseguram que são reis quando não passam de mendigos; que se acham cobertos de seda e púrpura quando estão nus; o que imaginam serem cântaros, ou mesmo que jurem serem feitos de vidro??? Assim tão doido seria eu caso procedesse segundo o exemplo deles." Id

  1. O simples fato de podermos saber que por vezes nossos sentidos incorram em erro, implica admitir que tais erros possam ser captados e corrigidos. Ficando demonstrado que a ignorância humana não é invencível.

D - "Os objetos são conhecidos apenas de modo indireto ou seja por meio do ar e da umidade." Tropói 6. Aqui Sexto: "Nós deduzimos que objeto algum se nos parece totalmente por si só, mas junto com qualquer outra coisa. Talvez seja possível dizer que a mistura formada pelo objeto externo e o veículo perceptor impede que possamos perceber o objeto externo como é por si só."

M - Neste tropo temos diante de nós um dos temas ou assuntos mais discutidos desde a antiguidade clássica até as Idades Média ou moderna, o tema da percepção.

Durante quase vinte e cinco séculos perguntaram-se os pensadores, sábios, filósofos e mistagogos sobre como nosso aparelho sensorial agia sobre os objetos percebidos ou vice versa, tendo sido propostas uma aluvião de teorias... Dentre aqueles que abordaram o tema ocorre-nos - de passagem - Parmênides, Melisso, Heráclito, Demócrito, Platão, Antistenes, Aristóteles, Epicuro, Zenon, Crísipo, Apuléio, Empíreo, Iamblico, etc dentre os antigos e Agostinho, Filipon, Aquino, Scotus, Descartes, Bacon, Hobbes, Locke, Hume, Kant, Wundt, Husserl, Avenarius, Mach, Lênin, etc

Dentre as citadas teorias uma das que granjeou adeptos no passado foi a do 'espectro' ou fantasma, segundo a qual todos os seres eram capazes de emitir uma espécie de duplo em contato com o ar, o calor, o frio e a umidade. Neste caso a coisa percebida não passava dum híbrido composto por elementos próprios associados a elementos externos fornecidos segundo a disposição do clima e da temperatura.

Naturalmente que esta teoria dispõe ao relativismo e ao ceticismo. Eis porque foi invertida ou introjetada por Aquino, o qual encarava o 'fantasma' como elemento 'a posteriori' elaborado pela reflexão tomando como ponto de partida os sensivéis próprios - cor, som, odor e gosto - e os sensiveis comuns: linhas, forma, tamanho, número e movimento.

Outros tantos, caindo no extremo oposto, encaravam a percepção como uma espécie de cárater divino, mágico ou imaterial. Deus nos faria perceber as coisas, no dizer de Berckley, inexistentes em si mesmas...

Quanto a teoria acima ventilada por Sexto naturalmente que cheira a kantismo na medida em que sustem uma possível mistura entre a sensação causada pelo objeto externo e algum elemento específico ou apriorístico portado por nós, no caso o tempo e o espaço. Ficando por intromissão das categorias sintéticas a priori de sensibilidade o noumeno ou coisa em si, convertido noutra coisa, numa mistura ou numa coisa híbrida: o fenômeno ou a coisa dada... poderíamos mencionar ainda o 'substrato incognoscível' que segundo Locke corresponderia a essência das realidades por nós percebidas (de modo que as realidades percebidas não passariam de simples involucro ou casulo)...

Hoje no entanto, após séculos de investigação, sabemos já que ambas as teorias ou suposições são inconsistentes. Nem existe qualquer espectro intermediário entre o objeto sensivel e o aparelho sensorial; nem é a sensação um capacidade imaterial, sobrenatural ou mística, nem existe qualquer 'espírito' ou alma por trás dos objetos materiais.

A luz do materialismo como queiram uns ou do realismo como queiram outros, podemos definir as formas percebidas como excitações externas produzidas no aparelho sensorial do sujeito por certas qualidades ou elementos materiais presentes no objeto ou na coisa percebida.

Destarte a cor não passa duma emanação de partículas materiais constituivas do próprio objeto em questão e nele presentes que de algum modo atinge todo sujeito percipiente esteja a seu alcance. Eis porque só podemos perceber ou observar as cores a uma certa distância, a partir da qual nada mais podemos 'ver', na medida em que o olho já não pode ser atingido pelas emanações coloridas emitidas pelo objeto; assim, não havendo excitação, não há sensação ou percepção de cor devido a distância excessiva.

Caso examinemos o segundo sensível próprio, que é o som, damos com o mesmo fenômeno material. Eis porque falamos em ondas sonoras que se propagam 'na matéria' e que sendo assim são puramente materiais.

Pois bem são tais ondas materiais que excitam nosso aparelho auditivo... não simulamos, inventamos ou imaginamos o som; capta-mo-lo i é percebe-mo-lo sob a forma de ondas sonoras cuja velocidade é mensurável.

Assim os odores enquanto emanações vaporosas emitidas pelos corpos a partir de elementos que neles se encontram. Emanações materiais - inda que difusas - apropriadas para excitar um orgão material como o olfato... assim o que captamos são atômos, moléculas ou substâncias materiais transportadas pelo ar; mas expelidas pelo objeto.

Quanto a visão, a audição e mesmo a olfação; convém que sejamos bastante explícitos justamente por se tratarem de sentidos que agem indiretamente sobre o objeto, supondo um elemento de separação existente entre ambos como seja o espaço e seus elementos constituintes. Porque nem os olhos, nem os ouvidos, nem as narinas precisam tocar os objetos para serem informadas por eles.

Aqui pois interfere o elemento distância, daí compreendermos as cores, ondas e odores como espécies de emanações sutis ou difusas que atingem o percipiente apenas até certo ponto para além do qual, diluem-se no ar e tornam-se 'obscuras'... De fato elas vão se tornando cada vez mais fracas até ficarem totalmente fora do alcance de nosso aparelho sensorial... e em tais condições tornam-se pouco distintas ou imprecisas, até que o aparelho cognitivo não possa mais interpreta-las corretamente sem da-las por outra coisa e incorrer em erro. Não é que os elementos materiais associem-se a outros elementos e se convertam noutra coisa... os elementos materiais tornando-se dispersos e frágeis perdem sua especificidade e exatidão, assumindo um cárater demasiado vago para ser compreendido pelo intelecto.

De modo que o intelecto, ao elaborar juízo, erra.

A propósito tanto Aquino quanto Aristóteles cogitam que os elementos: cor, o som e odor dependem da proximidade. E que o afastamento pode introduzir a confusão e o erro.

Nestes casos, qualquer defeito deverá ser corrigido pelos dois sentidos que agem diretamente sobre o objeto entrando em contato imediato com a matéria de que é feito. Referi-mo-nos obviamente ao paladar e ao tato.

Pelo paladar tanto podemos atingir parte do objeto e perceber a parte em conexão com o todo (como quando lambemos um imenso pedaço de rocha ou de gêlo, ou ainda o tronco duma árvore) ou receber a parte do objeto separadamente, como quando degustamos algum alimento; digamos uma coxa de frango ou uma posta de peixe. Seja como for aqui o contato é direto ou sem interferência de qualquer elemento qual seja o espaço...

Donde se infere que a coisa é diretamente percebida; sem que haja distância, separação ou interposição de qualquer outra coisa. Tal o caso do tato pelo qual 'pegamos' ou 'palpamos' os próprios objetos...

Daí o testemunho do paladar e do tato complementarem os da visão, da audição e da olfação e os sensiveis comuns corrigirem e complementarem os sensíveis próprios.

Aqui temos dois tipos de contato material: um que é direito e imediatamente material como no caso do toque e outro que é indireto e apemas mediatamente material como no caso dos olhos, do ouvido e das narinas atingidos por emanações materiais que atravessam a distância e que tendem por isso mesmo a diluirem-se no espaço. Neste caso a melhor garantia de autenticidade é a proximidade.

Então nós levamos em conta a limitação da distância, todavia não como algo insolúvel. Em havendo contato direto ou contato indireto, mas próximo; fica cortada pela 'navalha de Ockam' a teoria especulativa do fantasma ou do híbrido formado pelo objeto e a suposta associação com os elementos externos do clima. E solapados os fundamentos do relativismo.

Por outro lado já dissemos que o testemunho da percepção individual deve ser corrigido pelo testemunho da percepção social, grupal ou comum.

Partindo do fato segundo o qual os mesmos objetos produzem as mesmas excitações/sensações na imensa maioria das pessoas postas sob condições 'normais', deduzimos que as emanações provenientes dos objetos façam parte da natureza deles enquanto qualidades próprias. Convém pois dar razão a Aquino quando declara: "A vista vê, com efeito, a cor do fruto sem o odor; se perguntamos onde está a cor que é vista sem seu odor, é claro que tal cor só poderia estar no fruto" (S. Th. Ia Pa, q. 85, a. 2, ad. 2). acrescentando que o odor encontra-se no fruto. As qualidades encontram-se ambas juntas no objeto; os sentidos é que, por especiação, concentram-se apenas numa delas...

Nós no entanto nos tornamos aptos em associar as diversas sensações particulares; eis porque tocando e cheirando uma cebola podemos dum abacaxi e provando uma banana podemos distingui-la duma maçã...

D - "Porque não admites que o desaparecimento da sensação ímplica o desaparecimento do objeto?" Protagoras

M - Correspondendo a sensação um efeito produzido por um objeto que é sua causa, segundo o sofista grego só resta concluir que o desaparecimento do efeito - que é a sensação - implica no desaparecimento da causa, que é o objeto.

Destarte quando deixo de perceber meu cão para perceber qualquer outra coisa que não seja ele, deveria crer que ele deixou de existir...

E no entanto efeitos há na natureza que subsistem por muito tempo após o desaparecimento da causa responsável por sua produção; na medida em que prolongam-se por assim dizer. Desapareceu meu pai - que é minha causa - já há dez anos, enquanto que eu permaneço aqui escrevendo e laborando contra os adversários da Filosofia perene.

Por outro lado meu avô materno sobreviveu por décadas após a morte de seu primogênito; enquanto causa que subsistiu a eliminação do efeito...

A relação só existe genericamente e do ponto de vida estrito da causação: Em desaparecendo uma causa qualquer cessa de produzir efeitos... isto não quer dizer, no entanto, que os efeitos por ela produzidos não possam prolongar-se na ordem do tempo.

Por outro lado também é perfeitamente possível que as causas subsistam mesmo após a cessação ou desaparecimento dos efeitos produzidos. Uma laranjeira deita sua primeira carga de frutos que sãos seus efeitos... deveriamos concluir que a laranjeira desapareça após o derradeiro fruto desta carga deixar de existir???

Percebo meu cão enquanto concentro minha atenção nele... mas, como agente livre, posso concentrar minhas atenções sobre o gato do vizinho passando a ser atingido por excitações externas provenientes dele... Neste momento deixo de perceber meu cão sem que ele no entanto deixe de existir.

Isto tem uma explicação bastante simples: minha sensação ou percepção não comunica existência aos seres que percebo e tampouco determina a realidade externa a mim, limitando-se a ser excitada por ela.

Todavia o movimento presente nesta mesma realidade considerada afasta-me dum determinado objeto e aproxima-me de outro.

Que se sucede então?

Simples: meus sentidos, em função da separação e da distância deixam de ser excitados pelo primeiro objeto passando a ser excitados pelo segundo ou por um terceiro; por uma questão de pura e simples proximidade...

Disto não resulta que a cozinha ou a praça deixem de existir em si mesmas; elas apenas saem de foco ou deixam de existir para mim, para meus sentidos, para minha percepção - que alias é limitada - De modo absoluto continuam a existir, apenas de modo relacional e impróprio, para o sujeito percipiente, deixam de existir, enquanto se lhe ocultam.

Não são as coisas ou objetos que dependem de meus sentidos ou de minha acurada percepção para existirem; aparelho sensorial é que delas depende para perceber e conhecer.

Não 'crio' ou 'determino' aquilo que existe, limito-me a perceber e a conhecer...

Eis porque infinitos quintilhões de sóis, planetas, asteróides, etc subsistem em si mesmos girando pelos espaços sem necessidade de serem percebidos por mim ou pela espécie humana. As entidades ou seres materiais e sensiveis que compõem este universo são carecem de nosso 'placet' para serem aquilo que de fato são. Nós é que precisamos ou dependemos de nossos sentidos para conhece-los...

Em contrapartida não posso perceber meu pai ou a laranjeira que até o passado mês florescia e frutificava na casa da esquina... pelo simples fato de que meu pai é falecido e de que a pobre laranjeira foi cortada. Aqui o desaparecimento do objeto implica o desaparecimento duma sensação que ele não mais é capaz de produzir...

Concluindo: a existência real dos objetos condiciona a possibilidade da sensação sem que no entanto o desaparecimento da sensação implique a destruição do objeto. Ele apenas deixa de ser captado ou percebido mas não de ser.

"A sensação não se radica em si mesma; além dela há outra coisa que certamente a precede."  (Aristoteles > Metaph V & De anima III) e que precedendo-a também pode subsistir e permanecer após ter sido percebida.



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