sexta-feira, 20 de março de 2009

Respostas as objeções formuladas pelos céticos.

D - Segundo leio em Montaigne Cícero condena alguns de seus amigos por cultivarem a astronomia, o direito, a dialética e a geometria; os da escola de Cirene desprezavam a física e a dialética; Zenão no prólogo da República declara inuteis todos os ramos da educação liberal; Crísipo afirma que Platão e Aristoteles escreveram sobre a lógica por distração, e não crê que pudessem levar a sério um assunto assim tão vazio; Plutarco condena a metafísica; Epicuro condena a retórica, a gramática, a poesia, a matemática e outras ciências. Sócrates igualmente as desprezava todas, afora as que tratam dos costumes e conduta da vida.

M - Parece que esgotastes toda tua erudição...

D - rsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrsrs

M - Cícero condenar o estudo do direito é no mínino exótico para não dizer cômico, quanto a condenar a Dialética... o mesmo se pode dizer a respeito de um cético que recorre ao 'argumento da autoridade'...

Talvez Cícero ignorasse que sem geometria Roma não teria erguido pontes e aquedutos por toda Europa... ou construído tão boas 'cloacas'...

Por outro lado sem tais aquedutos e pontes talvez viesse a faltar água para os céticos beberem ou suas viagens se tornassem bem mais demoradas... quanto a falta de cloacas imaginem só o odor nauseabundo que os filhos de Pirro teriam e inalar... e com eles o 'elegante' Cícero...

Quanto a Zenon condenar o estudo das artes liberais, por que raios teria escrito uma 'República'?

Tampouco nos importam as opiniões e crenças desse obscuríssimo Crísipo - cujas obras em sua maior parte se perderam - sobre os egrégios Platão e Aristóteles imortalizados justamente porque suas obras foram compostas tendo em vista um plano lógico e uma ordenção interna a que chamamos coerência.

É possivel que Plutarco não fosse capaz de dissertar sobre metafísica... ou que a metafísica de seu tempo estivesse já apodrecida... como a de Leibnitz criticada com toda justeza por Kant...

Quanto ao juizo de Epicuro, fosse ele levado a sério e não possuiriamos as obras imortais de Ovidio, Virgilio, Estácio, Juvenal, Catulo, Propércio, Marcial, Dante, Camões, Milton... Talvez ele tenha se esquecido de que Tales, Pitágoras e o próprio Platão, dentre outros, haviam se dedicado ao cultivo das matemáticas...

Tais Filósofos que me perdoem mas com E Renan, creio que Teofrasto, Straton, Dicearco, Eratostenes, Aristarco, Hiparco, Euclides e Arquimedes sozinhos prestaram mais serviços a humanidade, do que todos os céticos, relativistas, idealistas e diletantes de plantão...

Que seria da pobre humanidade caso algum deles tivesse dado ouvido as cantilenas de Crísipo, Zenon, Epícuro, Plutarco, Sexto, Pirro, Aenesidemus e outros faladores...

Mas estes - pelo contrário - admitiam a veracidade de nossas sensações e confiavam na reflexão, na ciência, na busca pela verdade e por isso observaram, pesquisaram, averiguaram, experimentaram e descobriram; inventando uma porção de técnicas que facilitaram imensamente a vida de seus contemporâneos...

Que Sócrates tenha se ocupado especialmente dos problemas referentes ao fenômeno humano (ele certamente faria sua a sentença do dramaturgo: 'Nada do quanto seja humano me é indiferente') - foi o primeiro humanista e por isso mesmo um marco na História da Filosofia - como o bem e o mal, a justiça, os valores, etc e enfatizado a importância dos mesmos face a tecnologia pura e simples ou mesmo a metafísica estamos todos estamos fartos de saber. Que tenha condenado como inúteis e vãos os demais terrenos ou áreas do conhecimento filosófico, ignoro-o supinamente e não sei donde Montaigne tirou tão caprichosa idéia. Pois uma coisa é condenar a 'Ciência sem consciência' ou desvinculada da ética e outra, totalmente distinta é condenar toda ciência ou o conhecimento empírico em si mesmo, coisa que Sócrates jamais fez.

De fato Sócrates fez uma espécie de recorte, optando por aprofundar-se num determinado domínio, seja a definição dos conceitos (que toca a gnoseologia) e a ética. Disto não decorre que tenham sustentado ou afirmado a inutilidade dos demais campos da grande seara filosófica...

Desde quando optar por um setor da realidade - tendo em vista sua enorme amplitude - e dedicar-se especialmente a ele implica condenar o estudo dos outros setores? Desde optar pelo magistério implica condenar os que cursam direito ou cursar direito implica negar a validade do curso de medicina???

O máximo que podemos dizer é que como qualquer um de nós Sócrates optou pelo tipo de conhecimento ou saber, com base em seus princípios, valores e inclinações encarava como sendo o mais nobre ou importante: o homem, seu comportamento e a elaboração dos conceitos. Que tenha apresentado os demais estudos no campo da Filosofia como inuteis ou perniciosos, insistimos, não passa de afirmação gratuita e disparatada.

Para Sócrates havia uma hierarquia de saberes, com relação a qual o auto-conhecimento ocupava o primeiro lugar. Segundo Sócrates o homem devia conhecer primeiramente e muito bem a si mesmo para só então devassar o universo... Consequentemente prioriza ele o psicológico e o axiológico face ao ontológico e o prático, sem todavia restringir a realidade a tais áreas... Hierarquiza, prioriza, humaniza, mas não faz do reducionismo ingênuo e tosco credo seu.

Tanto que Platão, seu discípulo, explorará todas as áreas da Filosofia dissertando a respeito de todos os temas e assuntos possíveis e Aristóteles, discípulo de Platão e fundador do Liceu, seguindo os passos de seu mestre, comporá cerca de oitenta obras que ainda temos bem conservadas e outras tantas das quais nos restam apenas fragmentos. Abordando, do mesmo modo que o acadêmico, diversos aspectos do pensamento filosófico.

Seja como for tanto um quanto outro priorizaram a ética e o conhecimento do universo valorativo (axiologia) face aos demais tipo de saber.

E mesmo assim, tendo em vista a vastidão do campo por eles devassado, foram cognominados sistemáticos.

Nada mais avesso ao ceticismo do que o espírito de sistema, pois o sistema supõe uma hierarquia ou ordem de verdades organicamente dispostas e torno de um determinado centro vital.

sábado, 14 de março de 2009

Respostas as objeções formuladas pelos céticos.

D - "Clitomaco afirma jamais ter conseguido saber qual a opinião de Carneádes por meio de seus escritos. É por isso que Epicuro sempre foi ambiguo nos seus e que Heráclito grangeou o título de o obscuro... por isso Heráclito grangeou a admiração dos tontos, pois os tontos amam o enigmático como se fosse sinal de profundeza...a obscuridade é a moeda dos filósofos que destarte equivalem a prestidigitadores." Montaigne, iden 239

M - Efetivamente o problema da linguagem e da formulação dos conceitos tem sido bastante explorado pelos céticos de toda casta.

Tal apreciação teve seu ponto de partida com os sofistas da geração anterior a Sócrates.

Para os quais a verdade ou era inacessível aos mortais ou relativa a cada um deles.

E não devemos nos admirar disto uma vez que a maior parte deles era constituída por professores de retórica e gramática.

Seu ofício ou 'missão' era formar homens eloquentes com o objetivo de suprir a demanda política e jurídica, representadas pela Agora e o Aeropago. Cujas preocupações por sinal nada tinham de metafísicas...

Não estavam pois tais mestres preocupados com as coisas em si ou com a verdade, mas com as sensações estéticas que as palavras ou melhor os jogos de palavras seriam capazes de suscitar nos ouvintes. Importava para eles falar bonito ou discursar eloquentemente tendo em vista a persuasão das massas...

Eis porque tendiam a confundir a sabedoria, inclusive a moral, com tais jogos de palavras, totalmente desprovidos de conteúdo objetivo ou vazios de significado. Aqui temos a chocadeira do nominalismo...


O próprio Sócrates sentindo-lhe o 'ferrão' e desejando lançar das bases do pensamento futuro, declarou guerra ao senso comum tendo em vista a elaboração dum vocabulário propriamente Filosófico.

Eis porque costumava dizer: "Se queres dialogar comigo formula muito bem os teus conceitos." sabendo que  o entendimento comum supõe uma linguagem ao menos em parte comum.

Ao tempo de Sócrates porém foi um de seus 'sucessores' Aristóteles que levou a cabo tal empresa em termos definitivos. Partindo obviamente da herança legada por Platão seu mestre, o qual, como todos sabem, durante a flor da juventude, fora ouvinte do filho de Sofronisco.

Aristóteles no Organon e na Metafísica criou por assim dizer uma série de conceitos e expressões que tem sido empregados até nossos dias por alguns filósofos.

Sem embargo de todo este trabalho elucidativo não podemos negar que outros tantos pensadores esforçaram-se por forjar um tipo de pensamento artificioso e obscuro, cujo exemplo maior temos em Heráclito de Éfeso... Dentre os modernos Kant tem sido alvo de inúmeras críticas neste sentido. As quais no entanto temos por falsas e ilegítimas uma vez que ele, via de regra, quis servir-se dos conceitos e expressões 'batizados' por Aristóteles... 

Todavia Kant não é obscuro mas apenas e tão somente complexo ou díficil, como Aristóteles; com o qual alias dialoga. Neste caso o problema não esta no autor mas no leitor acomodado ou inepto...

Nietszche pelo contrário quis ser obscuro e obscuramente compôs o seu 'Zaratustra'. Hegel e Heidegger ao menos em algumas de suas obras, incorreram no mesmo vício.

Aqui concordamos ao menos em parte com Montaigne concedendo muito pouco valor a tais filosofias, procedam elas de Heráclito, Nietszche ou Heidegger. Tais exemplos no entanto constituem um capítulo a parte na História da Filosofia... e não o livro todo. Ao menos que excluamos Parmênides, Sócrates, Platão, Aristóteles, Aquino, Descartes, etc Ora nós fazemos causa comum justamente com estes; assim sendo as acusações dos antigos e/ou modernos não nos atingem e tampouco a Verdade em si mesma.

Pois como poderia ser a Verdade atingida justamente por aqueles que se desviam e afastam dela tomando outros rumos???



D - Suponho que desde então - do tempo dos sofistas - semelhante opinião tenha desaparecido até ser reeditada por Montaigne?

M - Tal opinião a respeito da linguagem, de sua ambiguidade, variabilidade e consequente incapacidade para expressar qualquer coisa de estável (como a verdade) foi retomada ao menos em parte pelo Bispo Agostinho de Hipona em seus primeiros dialogos nos quais a influência da nova acadêmia ainda se faz sentir.

Posteriormente Guilherme Ockan - que sendo franciscano herdou a tradição anti intelectualista dos agostinianos  - emitiu um opinião demasiado temerária a respeito dos universais ou conceitos alegando que não passavam de palavras ou códigos linguisticos sem maior significado. Ele partiu da repisada crítica anti platônica segundo a qual os conceitos inexistiriam em si mesmos...

Ignorando a solução proposta pelo estagirita segundo a qual os conceitos embora inexistindo em si mesmos como entidades reais (aqui o realismo ingênuo de Platão) existiriam de fato nos seres ou sujeitos a que dizem respeito.

Sua teoria recebeu o título de nominalista, porque aqui nada há de objetivo para além dos nomes e jogos de palavras... Ockan foi tributário de Agostinho e dos Neoplatonicos exercendo uma ação demolidora sobre a filosofia de então e antecipando as teorias de Hume e Kant.


D - Dizem que a teologia fideista de Lutero é tributaria do ockamismo.

M - As convergências são admiráveis pois tanto Agostinho, quanto Ockan e Lutero desesperaram já da linguagem, já do intelecto para mergulharem de cabeça no fideismo que é um ceticismo invertido. Estamos pois diante duma tradição intelectual ou melhor anti intelectual comum que vai de Agostinho a Ockan pela via franciscana, que por Ockan chega a Lutero e que de Lutero chega a Kant, cujos pais eram luteranos... As raízes desta tradição se encontram na nova acadêmia e no neoplatonismo; enquanto produtos duma F grega já em estado de declínio ou melhor dizendo em estado de decomposição.

Como afirma Renan muitos dos que desconfiam já da razão, já da percepção, já da linguagem, por paradoxal que possa parecer mergulham de cabeça na fé religiosa. E tornam-se depositários duma fé completamente cega.

Céticos há que duvidam de tudo menos da fé ou da religião. Este meio-ceticismo é tão perigoso e funesto quanto o ceticismo clássico pois produz apenas gente fanática e selvagem. É uma mutilação do homem como outra qualquer...

D - E após Ockan que rumos tomou o nominalismo?

M - Nietszche partindo de Kant; ultrapassa-o no que diz respeito ao problema da verdade e assim se expressa: "Os senhores me perguntam quais são os principais vícios dos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio contra o provisório e o inacabado , seu hermetismo, etc Eles acreditam que desistoricizar uma coisa, torná-la uma 'sub specie aeterni' e construir a partir dela uma múmia, é uma forma de honrá-la. Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias conceituais; nada de efetivamente vital... Eles matam, eles empalham, eles esterilizam quando adoram, esses senhores idólatras de conceitos. Eles trazem um risco de morte para todos, quando adoram. A morte, a mudança, a idade, do mesmo modo que a geração e o crescimento são para eles objeções – ou até refutações... Agora, eles acreditam todos, mesmo com desespero, no Ser. No entanto, visto que não conseguem se apoderar deste, eles buscam os fundamentos pelos quais ele se lhes oculta. “É preciso que uma aparência, que um ‘engano’ aí se imiscua, para que não venhamos a perceber o ser: onde está aquele que nos engana?” “Nós o temos, eles gritam venturosamente, o que nos engana é a sensibilidade! Esses sentidos... nos enganam quanto ao mundo verdadeiro. Conclusão: conseguir desembaraçar-se do engano dos sentidos, do vir-a-ser, da história, enfim da mentira. A História não é outra coisa senão uma crença nos sentidos, uma apologia da mentira."

E vira de ponta cabeça o kantismo: "Também Heráclito foi injusto com os sentidos. Estes não mentem nem como crêem os Eleatas, nem como ele o acreditava – eles não mentem de forma alguma. O que nós fazemos com seus testemunhos é que introduz pela primeira vez a mentira. Por exemplo, a mentira da unidade, a mentira da coisicidade, da substância, da duração... A “razão” é a causa de falsificarmos o testemunho dos sentidos. Até onde os sentidos indicam o vir-a-ser, o desvanecer, a mudança, eles não mentem... Mas Heráclito sempre terá razão quanto ao fato de que o Ser é uma ficção vazia. O mundo “aparente” é o único: o “mundo verdadeiro” é apenas um mundo acrescentado de maneira mendaz..."

Pois segundo afirma o defeito não esta nos sentidos ou na percepção dos objetos particulares, mas na razão com sua tendência mórbida a abstrair e construir conceitos de natureza universal ou comum.

A princípio o professor de Silz Marie professando uma espécie de relativismo histórico/cultural reconhece ao menos a existência real dos objetos percebidos; posteriormente no entanto, reverte a posição de Protágoras segundo a qual tudo quanto há são interpretações individuais de signos, jogos de palavras, discursos, intencionalidades e nada mais, assim já estamos em pleno terreno do relativismo/perspectivismo, do subjetivismo/voluntarismo tão caros a germanidade...

Kant oculta o se enquanto Nietzsche simplesmente descarta-o como uma construção artificial...

Desde então, como dizia Heidegger - outro pupilo de Agostinho - não mais se cogitou a respeito da verdade ou da metafísica (no sentido aristotélico) nos podromos da 'alta filosofia', que é como a filosofia alemã se auto avalia perante a tradição clássica que herdamos dos antigos gregos (no caso baixa filosofia). Também o francês Sartre, rompendo com a tradição comum a Cousin, Brehier, Brunschwick, Lalande, etc afirma que a busca pelo 'Ser' chegará ao fim uma vez que segundo declarava: 'A existência precede a essência.'...

Entrementes o nominalismo ou verbalismo atingiu o status de ciência sob a designação de semiótica (Saussure). A semiótica diz respeito a analise dos signos ou representações verbais, ou seja, dos jogos de palavras... grosso modo podemos dizer que quanto a ela mesma não há problema algum, o problema são aqueles pensadores que - como Foucault e Deleuze - reduzem toda questão Filosófica a semiótica ou seja a linguagem ou ao discurso, descartando qualquer indagação em torno do ser ou da objetividade dos conceitos.

Tendo diante de si esse pagode, ou melhor essa Babel na qual ninguém se entende - porquanto cada teórico produz sua própria linguagem e porfia-se em ser mais enigmático do que os demais - surgiu Wittgenstein, qual novo Sócrates, pretendendo examinar ou reexaminar os termos ou expressões filosóficas clássicas e decretando que tais eram os limites da investigação filosófica para além dos quais não era lícito passar; tão denso que era o cipoal... e os riscos de perder-se nele.

Para compreendermos a dimensão do problema causado pela filosofia confusionista e bastarda dos alemães, - excetuando evidentemente Trendelenbourg e Brentano; dentre outros - bastar-nos-ia recomendar a leitura do 'Vocabulário técnico...' de Lalande cujo objetivo é deslindar tais conceitos e expressões. Abagnano, Gusdorf e Ferrater Mora também contem ampla matéria a respeito; bem como os 'Manuais' de Brehier, Jolivet, Sciacca, Morente, Julian Marias e V de Magalhães Vilhena; dentre outras obras consagradas.

D - Vossa graça, parece particularmente infensa a filosofia alemã, porque?

M - De fato, ao contrário de certo ideal estereotipado ( Que afeta um tipo de imparcialidade hipócrita) sou obrigado a confessar minha má vontade face as teorias filosóficas procedentes da Germânia.

Grande parte das censuras referentes a obscuridade, vacuidade e artificialidade do vocabulário filosófico - como as que foram expressas por M Montaigne - tornaram a corporificar-se, por assim dizer, na moderna filosofia alemã post kantiana cujos ícones tão bem conhecemos uma vez que possuem a chancela da moda.

Não julgue porém, caro discípulo, que tais acusações sejam gratuitas ou sem razão de ser.

Encontra-mo-las a rodo e enxovia nas obras dos citados filósofos, a ponto de cremos que nas horas vagas dedicavam-se a trocar insultos e xingamentos (como seus ancestrais 'reformadores')...

Hora é Nietszche que achincalha Schoepenhauer, hora são Hartmann e Schoepenhauer que lançam pedras a Nietezche, hora é Paulus que mimoseia Hegel, mais além são Feuerbach, Stirner e Strauss que trocam deferências, e assim cada qual acusa seu rival de sofismar afetando um linguajar pomposo e repolhudo que ninguém é capaz de decifrar.. Cada pensador alemão encarava seu oponente como o mais perfeito escamoteador da face da terra. Assim sendo tais sistemas idealistas em sua maior parte, individualistas e subjetivistas até o solipsismo crasso, associavam-se, confundiam-se e sucediam-se uns aos outros como o cadaver de Safira ao de Ananias seu esposo aos pés do apóstolo Pedro...

Destarte, como o surgimento das seitas protestantes no contexto Cristão contribuiu poderosamente para a afirmação do ceticismo religioso na Europa e na América e a aparição de diversas seitas filosóficas da antiguidade havia preparado os caminhos para o triunfo do ceticismo intelectual, para a afirmação do misticismo e para a destruição do 'mundo antigo'; os inúmeros partidos, grupos, escolas e correntes em que a Filosofia cindiu-se no decorrer dos três últimos séculos tem contribuído poderosamente para apartar os homens tanto da reflexão filosófica quanto da busca pela verdade, seja ela ontológica, ética ou estética...


D - Deste jeito até parece que o Mestre dá razão a Montaigne...

M - Caso negasse tais desencontros em matéria de linguagem ou conceitualização não estaria sendo honesto  comigo mesmo.

De fato ao menos em parte M Montaigne é assistido pela razão e pela justiça e não posso discordar dele; no entanto... apenas em parte.

Pois como de costume nosso autor examina apenas um dos lados, o que melhor convém, tendo em vista a demonstração de sua tese e confere-lhe um peso demasiado grande. E este defeito de argumentação acaba conferindo ao problema uma dimensão ou abrangência que por si só não possui, e a inferências descabidas como a justificação do ceticismo crasso.

Admito que analisando apenas o vocabulário dos sofistas antigos ou dos alemães modernos, ficamos como que aturdidos e petrificados diante da confusão reinante e desistimos de poder compreender qualquer coisa.

Nietzsche emprega uma linguagem, Hartmann outra, Wundt outra, Mach outra, Hiddeger outras, e assim por diante... Como num autêntica Babel em que ninguém se entende. Daí existirem já 'dicionários' de Nietzsche, de Kant, de Heiddeger, etc tendo em vista facilitar o entendimento de suas respectivas obras.

Cada um destes honoráveis senhores construiu para si como que um feudo a parte - em seu gabinete - e seus legítimos discípulos e sucessores interpretam-nos como querem, inaugurando cada qual sua seita... basta lembrar o empirismo inglês (de Bacon, Hume, Spencer, etc) empirismo francês ou positivismo (de Comte et aliae) e o empirismo alemão (de Dilthey e cia) cada qual com suas 'peculiaridades'. Em termos de Kantismo temos os de Cohen, Natorp e Cassirer i é de Marpurgo, que priorizam a "Razão pura", os de Windelband, Rickert e Troeltsch i é de Baden, que priorizavam a "Razão prática", os de Leonard Nelson e os franceses de Ch Renouvier... enfim Kant para todos os gostos.

De Natorp o aparelho conceitual Kantiano passou a Husserl, assentando as bases da fenomenologia e daí a Emil Lask que é o 'elo de ligação' entre Husserl e Heiddeger. Todas estas correntes relativistas e subjetivistas correspondem a ulteriores transformações ou desenvolvimentos porque passou o kantismo. A partir de Ed Bernstein (austromarxismo) parte dos marxistas abandona o materialismo dito dialético e aderem a uma epistemologia neo kantiana, o que de certa maneira correspondia já aos anseios de Lange e Cohen... atualmente o Kantismo tem sido reeditado por Peter Strawson e Jean Luc Nancy, recebendo de cada um deles uma coloração diferente.

Estamos pois diante dum mercado ou duma feira e vos asseguro que rios de tinta e montanhas de papel tem sido gastas com o intuito de interpretar ou decifrar tais 'obras primas'...

E como por absoluta falta de preparo a maior parte dos estudantes e professores tem se revelado incapaz de compreende-las afirmam logo - ao invés de confessarem sua ignorância - que se trata da mais alta e refinada sabedoria... quanto aos que ousam compor alguns comentários ou exposições ainda mais obscuros e toscos guindam-se as supremas alturas e assumem as principais cátedras...

Quanto a Filosofia alemã sou obrigado a concordar que se tais cursos fossem fechados e substituidos por cursos científicos - especialmente nas áreas de biologia, psicologia e sociologia - a sociedade seria amplamente beneficiada. Pois a filosofia alemã não passa de logomaquia ou verborragia inútil, passatempo de burgueses fúteis e ociosos.

Apesar disto existem outras correntes filosóficas tanto mais sérias quanto consistentes e, como tais, detentoras de um vocabulário ou de um patrimônio conceitual que remonta a Sócrates. Refiro-me ao Aristotelismo especialmente sob sua sua forma pura, mas também sob sua forma 'Cristianizada' o tomismo, se bem que esta cristianização seja mais uma platonização introduzida pelo agostinianismo e como tal uma infecção deletéria. Refiro-me ainda a filosofia do 'senso comum' de Reid, ontologia rosminiana, ao deísmo racionalista, existencialismo, personalismo, etc

Possui a escolástica um vocabulário técnico bastante preciso, objetivo e límpido e uma metodologia característica: logico-dialética.

Em seu campo e mesmo nos campos do senso comum e do marxismo as expressões, conceitos e métodos são definidos e balizados com relativa clareza, permitindo inclusive certos intercâmbios, cruzamentos ou momentos de diálogos.

Afinal trata-se duma caracteristica comum ao realismo objetivista em oposição ao idealismo subjetivista marcado pelos devaneios da fantasia e da imaginação.

Não há muito espaço nos sistemas realistas gregos ou contemporâneos para ilações frívolas e descabidas.

sexta-feira, 13 de março de 2009

Respostas as objeções formuladas pelos céticos.

D - "Clitômaco, Carnéades e os acadêmicos desesperaram de encontrar a verdade e julgaram que nossas faculdades são incapazes de descobri-la; daí concluirem pela fraqueza e ignorância do homem."

M - Compreendemos que tais personagens tenham desesperado por completo das faculdades do intelecto humano... alias coisa comum é o desanimar e desistir diante das empreitadas de maior dificuldade.

E no entanto, por capricho de contradição, exerceram juizo... segundo qual não se deve julgar absolutamente nada.... mas... se julgar, é predicar e o ceticismo é uma predicação positiva a respeito de nossa ignorância invencivel...

Julgar que não se deve julgar... ou postular intelectualmente a nulidade do intelecto parecem-nos atitudes bastante 'exóticas'... como a de Kant que negou metafisicamente a metafisica na medida em que elaborou uma metafísica do conhecimento...

Guiaram-se pois os acadêmicos, como já dissemos, pelo cálculo matemático das probabilidades, julgando assim poder chegar a verossimilhança que é, por assim dizer, uma aproximação da verdade.

No entanto como poderia aproximar-me de algo que não existe ou de algo que não me é dado conhecer?

Por outro lado se posso aproximar-me do conhecimento, sou levado a concluir que ele existe...

A menos que nos aproxime-mo-nos do nada...

Admitamos que nos seja dado atingir a aparência do conhecimento... neste caso nosso conhecimento continua sendo sempre incerto já porque a aparência não corresponde ao ser em si, já porque as aparências muitas vezes são artificiais e enganosas.

Por outro lado a simples ideia de 'aparência' remete-nos ao ser em si enquanto entidade real que jamais atingimos.

Significa o probabilismo a aquisição de um conhecimento inferior, que jamais chega a completar-se, que não é capaz de superar-se e tornar-se pleno ou melhor numa ilusão; na medida em que a coisa em si nos é negada, permanecendo sempre oculta. Importa pois em meio ato ou em nave que levanta vôo para logo em seguida cair... pois a cobiçada relação entre intelecto e o objeto jamais se realiza.

Equivale a circular em torno da verdade, em tatear ou chegar perto dela. É pois uma espécie de meio caminho percorrido... que no entanto não nos leva ou conduz a lugar algum; porque o objeto permanece sempre velado e envolvido pela obscuridade.

É confessar que o intelecto tende a posse da verdade, que é feito para ela, que busca-a, que procura-a, que quase consegue apreende-la, mas, que falha vergonhosamente nos últimos tramites e fica a dar voltas em meio a escuridão...

Do ponto de vista do ceticismo puro o probabilismo academico é um esforço absolutamente vão ou a busca por uma quimera jamais encontrada. É como se o homem corresse atrás de sombras e fantasmas que se desfazem ao romper da aurora... É como se alimentasse um desejo que jamais poderá ser concretizado...

Somente a esperança da posse da verdade justifica os mais nobres esforços e sacrifícios empreendidos pelos grandes homens tendo em vista sua aquisição. Afinal estar perto de Paris não é estar em Paris e estar próximo de Atenas não é estar em Atenas...

Afirmar ou julgar que nos aproximamos da meta ou do objetivo traçado sem concretiza-lo é convocar os homens a inação.

Ou nossas faculdades sensoriais e intelectivas são totalmente confiáveis, ou... do contrário, que proveito nos trariam??? Que proveito me traria um automóvel capaz de levar-se a S Bernardo se preciso chegar a S Paulo???

D - Tendo em vista a enorme variedade de correntes, escolas, grupos ou partidos filosóficos "Não seria melhor ficar fora da confusão?"

M - Já o patriarca Pirro tirava partido da existência de tantas escolas e sistemas para concluir que é impossível ao homem atingir a verdade. Agripa classifica este argumento como correspondendo a DISSENSÃO

No entanto o fato de haver tantos grupos filosóficos não implica que seus partidários estejam todos corretos a respeito do que discordam ou que discordem sempre e a respeito de tudo. Tampouco significa que todos os grupos estejam igualmente equivocados a respeito das matérias sobre as quais há discrepância, pois é perfeitamente possível que um dos grupos apenas haja dado com a verdade a respeito de determinado aspecto pertinente a determinado tema ou assunto. Mormente quando os temas e assuntos são tão numerosos quanto complexos

Discordam sobre alguns pontos e concordam a respeito de outros, há dissonâncias mas também há convergências; as quais por sinal são de grande importância.

Grande número de pensadores é Deista. Outro grupo bastante considerável é composto por Agnósticos.

Quanto aos pensadores religiosos via de regra são comedidos ou melhor dizendo semi deistas, repudiando a ação miraculosa do Supremo Ser no tempo presente.

Agnosticismo e deismo são grandes correntes em matéria de filosofia. Ateus constituem franca minoria e fetichistas, via de regra, desdenham do conhecimento filosófico, fazendo praça da ignorância...

No que diz respeito ao problema da natureza do conhecimento temos apenas duas ou se quisermos três hipóteses: Realismo, Idealismo e Criticismo... quanto a criteriologia temos Objetivismo e Subjetivismo e quanto a ontologia o Dualismo (seja platônico ou cartesiano), o monismo idealista e o monismo materialista.

Quanto a tese que estamos discutindo - sobre a possibilidade do conhecimento - há igualmente duas soluções possíveis: Ceticismo e Dogmatismo.

Não há pois que exagerar as dissenções ou controvérsias em matéria de filosofia pois a temática filosófica possui alguns grupos, centros de convergência ou teorias bem definidas: Ateismo, Deismo e Agnosticismo; Realismo, Idealismo, Criticismo; Ceticismo e Dogmatismo, Objetivismo e subjetivismo/relativismo; Dualismo, monismo materialista e monismo idealista; Altruísmo e Utilitarismo; Individualismo e Socialismo... etc

Dentro deste quadro há sistemas ou sínteses bastante harmoniosas como o Aristotelismo ou o tomismo, o materialismo dialético, o platonismo clássico, o Hegelianismo, o existencialismo e o padrão humanista/personalista de inspiração Socrático/Cristão; bem como soluções pessoais quais sejam o ecleticismo editado no século II a C por Antioco de Ascalon e Andrônico de Rodes ou o ecleticismo reeditado ultimamente por Maine de Biran, Victor Cousin, Royer Collard, Theodoro Jouffroy e Damiron. 

Evidentemente que tais sistemas não podem ser simultaneamente válidos, alguns deles sem embargo disto, são admiráveis pela coerência interna e dignos de exame crítico... Por outro lado podemos admitir como rigorosamente exata a sentença do citado Cousin, segundo a qual, cada um deles comporte certas verdades a serem extraídas e harmonizadas pelos espíritos mais elevados...

Inclinando-me eu, como todos sabem muito bem - ao menos quanto a ontologia, gnoseologia, epistemologia, teodicéa, etc - ao aristotelismo, sob vários aspectos - não posso, apesar disto, deixar de reconhecer, com os ecléticos, que o erro, no mais das vezes não passa duma verdade recortada, isolada e hipertrofiada... duma visão periférica ou duma aproximação.

Cada intelecto é pois convocado a examinar já os grandes sistemas de pensamento, já as principais idéias e teorias, já os temas, assuntos e questionamentos propostos de modo a tirar suas conclusões e a discernir a verdade... ao invés de assustar-se com a variedade das opiniões.

No fim das contas creio que há mais concordância do que discordância entre os pensadores se excluirmos os ateus, os idealistas e os individualistas.

Temos as idéias da verdade, de Deus, da realidade do universo, das leis naturais, da ciência, da virtude, da vida, do homem, da justiça, do belo, etc E isto não é coisa de pouca monta.

O fato de que nem todos possam apreender a verdade na mesma medida e concordar em todos os pontos não quer dizer que a verdade não exista ou que não exista um certo número de verdades fundamentais; mormente aquelas de cárater intuitivo já assinalado por nós.

Ademais, quanto a este ponto, devemos reconhecer o poder e a influência da vontade face ao intelecto, na medida em que muitos personagens ilustres - tanto da antiguidade quanto do tempo presente - mantiveram e sustentaram certas doutrinas estranhas, exóticas ou mesmo bizarras < algumas delas descritas por G Papini em 'Gog' >com o propósito puro e simples de atrair a atenção e de arvorarem-se em mestres dum grupo mais ou menos extenso de profitentes, com as decorrentes vantagens em termos de fama ou mesmo de proventos financeiros...

D - "Se se encontram sobre um mesmo assunto razões idênticas a favor ou contra, deve-se suspender o juizo... não há como falar mais a favor do que contra."

M - Segundo Timon, o silógrafo - em nome de Pirro - "Qualquer afirmação poderia ser contradita por argumentos igualmente válidos.".

Caso Timon ou seu mestre tivessem dito que qualquer afirmação poderia ser contradita por outra ou por argumentos opostos estaríamos de pleno acordo.

O que negamos e de modo algum admitimos é que os argumentos de quem afirma e os de quem contradiga possuam sempre e inevitavelmente a mesma força ou peso... a ponto de não sermos capazes de atinar com os quatro lados de um quadrado ou com a mamiferidade de um cão.

Longe de nós por em dúvida que alguém seja capaz de atribuir três ou cinco lados ao quadrado ou de negar que o cão pertença ao grupo dos mamiferos...

Argumentar que uma ave possua glândulas mamárias, pelos, plascenta, etc até é possível; mas não seriamente...

De fato, nos casos em que haja número equivalente de evidências tanto a favor, quanto contra, é necessário suspender o juizo e duvidar ou sendo a evidência para um lado ligeiramente maior, é recomendável opinar, isto, diz, não o ceticismo, mas a boa e perene filosofia.

A filosofia perene nada postula ou propõe como exato antes de ter examinado e respondido satisfatoriamente a cada uma das objeções emitidas por seus oponentes e defendido suas teses com argumentos decisivos e a toda prova. Por isto ao tratarmos da Existência de Deus, não nos contentaremos em expor todas as evidências e argumentos elencados por Platão, Aristoteles, Cícero, etc Mas analisaremos detidamente, cada um deles, sobre todos os aspectos possíveis levando em conta as críticas tecidas já por Hume, já por Kant, já por seus seguidores agnósticos, fideistas, etc Para só então examinar e dar resposta aos argumentos de Broussais, Faure, Le dantec, Onfray, etc opostos a sua existência, e não passaremos adiante sem  tudo ter examinado e a tudo ter respondido conforme o caso.

O problema é que os céticos estendem esta paridade absoluta quanto as evidências e argumentos a todas as questões, o que segundo julgamos não procede.

Do contrário nossos tribunais e fóruns jamais chegariam a qualquer veredito a respeito dos casos propostos a apreciação, as discussões prolongar-se-iam ao infinito e a justiça jamais seria implementada. Tais situações de paridade e confusão efetivamente ocorrem, convém no entanto evitar as generalizações infundada apresentando-as como uma espécie de lugar comum.

Assuntos e casos há que possibilitam uma demonstração cabal dos argumentos e fatos, estabelecendo a verdade em sua limpidez e inteireza.

D - O mesmo Timon faz observar que 'Juízo algum pode ser considerado melhor que outro.'.

M - Nós no entanto pensamos que o juízo que mais se aproxime do objeto, exprimindo sua essência ou alguma de suas qualidades; mereça ser considerado como melhor, superior ou verdadeiro.

Por exemplo aquele que é capaz de captar a cor azul duma parede azul parece-nos mais digno de crédito do que aquele que atribui-lhe qualquer outra cor. E tanto mais adesões recebe este juízo tanto mais seguro fica...

Assim aquele que é capaz de inserir o pombo no grupo das aves, tomando por ponto de partida a forma de seus ossos, a presença de penas, a ausência de dentes e a reprodução ovipara do animal; parece-nos muito maios digno de crédito do que aquele que pretenda inseri-lo em qualquer outro grupo.

Alias na medida em que o juízo é expresso pela linguagem e socializado, expondo-se a crítica dos demais e resistindo a ela, as garantias de credibilidade vão se tornando cada vez maiores. E podemos dizer que o controle externo exercido pelos demais sujeitos percipientes e reflexivos torna-se fiador seu.

A presença ou ausência do atributo ou predicado em determinado objeto, garantida pelo testemunho conjunto ou mútuo, é o que faz com que um juízo de afirmação ou de negação receba sua consistência.



D - "Deus não quis que conhecessemos o sentido das coisas, mas que nos limitassemos a usa-las."

M - Outra afirmação gratuita...

Neste caso produzindo criaturas incapazes de adquirirem o conhecimento da natureza das coisas, deus teria produzido não só criaturas ignorantes, mas criaturas fadadas a um tipo de defeito ou de imperfeição insuperável e incorrigível.

Teria deus disposto o homem para a ignorância como para uma espécie de bem ou virtude.

Quiçá receando que o homem, aprendendo, viesse a tornar-se igual a ele.

Tal o sentido dos primeiros capítulos do Gênesis, segundo os quais deus dos israelitas fizera o homem para a ignorância do bem e do mal.

Que Deus tenha concebido criaturas, a princípio ignorantes, porem capazes de tomarem posse, gradativamente, da sabedoria, mesmo que a custa de titânicos esforços, compreende-se muito bem. Neste caso teria produzido o imperfeito para que tomasse posse da perfeição por iniciativa própria, o que é assaz admirável e constitui, por sinal, o fundamento do mundo axiológico...

Agora que tenha encadeado perpetuamente todas as gerações a um estado de ignorância invencível, e permitido simultaneamente que nelas aflorasse a curiosidade e o desejo de adquirir o conhecimento da verdade, só se fosse um deus mau ou um anti deus... i é, uma espécie de 'diabo'...

A simples possibilidade do homem poder construir, como pode, um conceito tão belo quanto o da verdade associado a impossibilidade de tomar posse dela constitui, admitida a existência de qualquer tipo de deus, uma monstruosidade moral e prescindido de qualquer tipo de deus, uma tragédia de imensas proporções.

Julgo que um deus promotor do ceticismo não deveria sequer ser objeto de dúvida, mas de negação, como ser mesquinho, egoísta, imperfeito e logo, desnecessário. Pois um deus isento de perfeição não é de modo algum necessário.

Para mim a adesão ao ceticismo seria sempre restrita pois comportaria sempre uma certeza básica: não há qualquer tipo de deus...



D - "O verdadeiro e o falso existem, mas não podemos conhece-los."

M - Tal afirmação não passa de rematado sofisma.

Só o verdadeiro existe enquanto ser e substância.

Se o verdadeiro é a afirmação da qualidade presente num objeto, a presença de tais e tais qualidades no objeto constituem já uma espécie de verdade que classificamos como ontológica ou factual. Tal a concordância da coisa consigo mesma e com seus atributos constituitivos, sob pena de ser outra coisa.

Se o falso é o oposto ao verdadeiro fica assente que nem pode subsistir - no objeto - com a qualidade existente no caso da negação ou deixar de subsistir no caso da afirmação. Importa dizer que ele jamais subsiste em si mesmo mas apenas subjetivamente na mente ou intelecto daquele que erra.

Uma vez que a capa do livro é toda vermelha ao afirmar 'A capa do livro é azul' temos um juízo falso determinado pela ausência da qualidade azul no objeto; importa dizer que este juízo jamais ultrapassa sua formulação e expressão... por outro lado ao negar 'A capa do livro não é vermelha' temos um juízo falso determinado pela presença no objeto duma qualidade que negamos, portanto a realidade em si continua não correspondendo a predicação que fazemos... errar é sempre não corresponde ou não ser.

Constitui pois o erro fenômeno puramente psicológico, o qual ontologicamente falando inexiste...

A realidade do falso ocorre exclusivamente no plano interno ou mental, o falso é um ente de razão concebido por falha sensorial ou intelectual e não um ente existente em si mesmo fora daquele que veio a concebe-lo.

Ora se o falso pode existir na mente do sujeito porque a verdade enquanto relação de conformidade entre o objeto e a predicação, não pode existir da mesma forma em sua mente?

Seria o caso da verdade existir apenas no objeto e a falsidade apenas no sujeito? É o que parece supor o ceticismo e assim supondo mostra que no fundo, no fundo não passa dum preconceito ou dum pessimismo com relação ao próprio homem e suas aptidões.

Parece-nos que o ceticismo comporta certa doze de pessimismo antropológico.

sexta-feira, 6 de março de 2009

Respostas as objeções formuladas pelos céticos.

D - Constituindo o ceticismo abominável contra senso como de fato o é, porque tantos pensadores ilustres  - como Górgias, Protágoras, Pirro, Aenesidemus, Sexto, Montaigne, Hume, Popper, etc - tem se dedicado a sua defesa e sustentação?

M - De nossa parte julgamos que tais personagens defenderam-no com toda candura e boa fé, pois a contradição presente no âmago do ceticismo não é explícita ou evidente por si mesma. Precisa pois ser mostrada ou posta aos olhos do cético.

É necessário antes de tudo, tornar patente ao cético, as certezas implicitamente presentes no estado dubidativo, e posteriormente, analisar cada um dos argumentos ou objeções com que costumam impugnar o dogmatismo. O que pretendemos fazer agora e, para que faça-mo-lo muito bem tu deves exercer o papel de advogado do Diabo...

D - Esforçar-me-ei desde já por vindicar o ceticismo.

M - Sei que te esforçaras.

D - "A cegueira da alma não somente induz o homem ao erro, mas ainda a amar seu erro." Montaigne, Apologia a Raimond Sebond

M - Todavia não pode existir cegueira absoluta ou universal, conforme a cegueira é relativa a visão enquanto privação da mesma.

Logo, antes de existir o cego pela carência da visão, deve certamente existir aquele que vê ou o lúcido pela posse da mesma.

A existência da cegueira não depõe contra a existência da visão e tampouco da luz, antes supõe a existência tanto duma quanto doutra, as quais opõe-se por assim dizer correspondendo a privação.

Só porque alguns infelizes não são capazes de contemplar os raios do sol, concluiremos que todo o gênero humano é igualmente incapaz de contempla-lo???

Assim se sucede no mundo do saber ou do intelecto: embora existam almas ou espíritos cegos e fixados invencivelmente no erro, também existem espíritos habilidosos que apreendem e estimam a verdade, inda que a custo de inúmeros sacrifícios.

Nós não negamos a existência da cegueira e da ignorância, os céticos é que absolutizam-nas... ao anormal tomam por normal, as exceções transformam em regras, ao defeito convertem em sanidade...

D - "O corpo corruptivel entorpece a alma e essa morada terrena a deprime no próprio exercício do pensamento." iden

M - Aqui estamos diante dum preconceito - ou seja dum conceito anteposto a investigação - bastante antigo e de certa forma presente já nos escritos do velho Platão e que foi reforçado ainda mais por obra e graça de Plotino e sua escola, donde passou a Agostinho e a Cristandade, recebendo inclusive certas 'colorações' ou temperos de maniqueismo.

Refiro-me a suposta indignidade da matéria, do corpo e dos sentidos em oposição ao espírito, a alma e ao intelecto.

Segundo os referidos mistagogos deus teria enfiado a alma humana numa espécie de cela ou catafalco: o corpo, e este seria a causa de todos os seus sofrimentos e desgraças.

Como os sentidos são antes de tudo órgãos corporais... as informações recebidas por eles devem ser consideradas como sendo, no mínimo suspeitas.

Toda a casta de idealistas ou de espiritualistas desbragados aborrece o corpo físico e desconfia dos sentidos...

Como nos achamos diante duma afirmação gratuita - o cárater inferior ou indigno do corpo físico - bem poderíamos gratuitamente negar; conforme o princípio: TUDO QUANTO É GRATUITAMENTE AFIRMADO PODE SER GRATUITAMENTE NEGADO...

Melhor todavia é problematizar e refletir.

Eis porque julgamos que o Supremo Ser, tendo em vista informar a alma sobre o mundo externo, colocou a serviço da mesma um substrato altamente evoluído e capaz: o corpo ou melhor os sentidos. Assim corresponde ele - o corpo - a um instrumental da alma e instrumental graças a que lhe é dado explorar o mundo físico e natural.

A própria afinidade entre o objetos e o veículo do conhecimento indica-nos isto. Adequados são os sentidos para explorar uma realidade que é antes de tudo composta e material. Partilhando da mesma categoria de substância as coisas/fenômenos e os sentidos são perfeitamente capazes de estabelecer uma posição relacional.

Encaramos pois o corpo ou os sentidos da mesma forma que encaramos uma laranjeira, cujo fim ou objetivo é produzir laranjas. Assim o corpo e os sentidos estão dispostos para conhecer as entidades materiais...

Corresponde o substrato físico do homem a um instrumental naturalmente adequado tendo em vista o preenchimento do intelecto e a sua posterior reflexão. Caso os sentidos falhassem miseravelmente em sua tarefa de informar o intelecto seriamos inferiores a um pé de laranja lima.

Ao contrário do que supõe os mistagogos nós sustentamos que o aparelho sensorial serve justamente como uma espécie de ponte colocada entre dois extremos: nosso espírito e o mundo das substâncias materiais e compostas.

D - Montaigne na já citada Apologia brinda seus leitores com toda uma série de exemplos concernentes a inteligência animal, querendo insinuar com isto que a posse do intelecto não é um privilégio exclusivo dos seres humanos. Parece-lhe pois sumamente absurdo que o intelecto humano nutra pretensões exclusivas sobre a aquisição da verdade...

M - Aqui trata-se de mais uma variante do primeiro 'Tropoi' de Aenesidemus reproduzido em sua 'Pyrrhoneia' - cujos extratos foram preservados no "Myriobiblion" de S Fócio. Eis o conteúdo do Tropoi: "Diferentes animais manifestam diferentes niveis de percepção."

Efetivamente, no tempo em que Montaigne floresceu, como de certa forma ainda hoje, a grande maioria das pessoas - ignorando supinamente a matéria em questão - julgava que os animais não passavam de seres absolutamente privados de inteligência e inaptos para apreender qualquer tipo de conhecimento. Assaz conhecida é a fábula segundo a qual o Pe Malebranche costumava chutar sua cadela de estimação por estar convencido de que o animalzinho não passava duma máquina desprovida de qualquer tipo de sentimentos ou afetividade.

Tais gênero de pessoas, induzidas pelos exemplos elencados, concluiria muito naturalmente que 'se a inteligência não capacita os animais a apreenderem qualquer tipo de coisa ou verdade' tampouco haveria, a mesma qualidade, de capacitar ao homem para apreende-la... Dificilmente tais pessoas concederiam aos animais ou brutos, como costumavam ser classificados naquelas priscas eras, qualquer tipo de acesso ao saber.

Como se não fossemos nós também animais ou como se os animais tendo acesso a certo nível de conhecimento pudessem por assim dizer profana-lo...

E no entanto não pertencemos ao grupo dos minerais ou ao grupo dos vegetais... E tampouco correspondemos a qualquer tipo de 'criação' a parte, especial ou superior.

Somos pois vertebrados, mamíferos e primatas...

No frigir dos ovos sabemos que Voltaire - há cerca de dois séculos e meio - foi capaz de notar a capacidade cognitiva dos animais e que entre nós, um engenheiro; Garcia Redondo, publicou um opusculo a respeito, cerca de cem anos (Em 1908). Posteriormente ( a partir dos anos 80) diversas publicações científicas, como National Geographyc e Science retomaram tais pesquisas, chegando as mesmíssimas conclusões...

Diante de tudo isto a que conclusões deveríamos chegar?

Partindo do fato segundo o qual os mesmos fenômenos perceptivos e cognitivos apresentam-se tanto nos seres humanos quanto nos animais, parte de nós optaria por salvaguardar o cárater hermético da coisa em si - ou noumeno - questionando a validade dos fenômenos cognitivos em geral independentemente da origem... postulando o ceticismo universal e afirmando que nem uns nem outros - animais ou homens - são capazes de saber qualquer coisa...

Estranha forma esta de se vindicar a 'dignidade ímpar' do homem propondo sua ignorância invencível.

É como se para salvaguardar a dignidade do Cristo Redentor ou da Estátua da Liberdade, devessemos po-las abaixo...

De fato aqui homens e animais são como que nivelados, mas com o premeditado intuito de apresenta-los como inaptos face a uma videira que produza uvas ou de de uma bananeira que produza bananas...

Pois ao contrário duma árvore frutífera que por algum motivo não produz fruto; homens e animais, na medida em que são dotados de auto consciência seriam capazes de perceberem a si mesmos como frustrados na medida em que são incapazes de realizar um ato para o qual foram dispostos... na medida em que natureza acenou-lhes com uma posse que não pode ser satisfeita; pregando-lhes uma peça. Aqui a auto percepção associada a posse de um aparelho cognitivo complexo adquiriria o significado duma tragédia...

O homem seria capaz de conceber e aspirar por um bem - no caso o conhecimento da verdade - que a natureza situou para além de suas possibilidades...

Diante desta meia ignorância, o personagem Cypher estaria cabalmente certo ao afirmar que: "A Ignorância equivale a felicidade."... Afinal para que saber que somos incapazes de saber ou invés de nada sabermos em absoluto como as pedras e pedaços de madeira... para que saber que buscando o conhecimento corremos em busca duma folha batida pelo vento e sempre transportada para longe de nós??? Que benefício adviria do fato de termos consciência duma ignorância que jamais pode ser superada???

Aqui a auto consciência e a auto percepção corresponderiam a desvantagens e nós humanos corresponderíamos na verdade ao derradeiro estádio duma trajetória que num determinado momento tomou a direção errada...

Eis porque - dentro duma perspectiva evolutiva - não partilhamos de tais preconceitos com relação aos animais e reconhecemos sem maiores problemas que eles - especialmente os mais próximos de nós e cujo aparelho cerebral é tanto mais desenvolvido - também são capazes de perceber e de conhecer o mundo em que vivem, ao menos em parte.

Que meu cão apreenda verdades e que tenha certeza quanto a sua validade, verifico-o eu mesmo ao ve-lo comer mato ou ervas quando incomodado por lombrigas; e ele não duvida por um instante de que o capim seja capim e tampouco confunde-o com as ervas venenosas que crescem junto a ele. A tais fenômenos, certas pessoas ignorantes e pretensiosas, atribuíram o pomposo nome de instinto, querendo com isto autorgar-lhe certo ar de fetiche ou mistério... Afinal alguns termos são tão genéricos e capiciosos que ao invés de elucidarem qualquer coisa, obscurecem o assunto.

O homem - como animal mais desenvolvido na escala evolutiva - graças a uma capacidade tanto mais acentuada para abstrair é capaz de apreender uma carga maior de verdades tanto mais complexas, mas, nem por isso, menos verídicas.

Ao verificarmos que os animais também são aptos para captar certas categorias da verdade, ao invés de desesperarmos quanto a capacidade do intelecto humano deveríamos concluir que a aquisição e construção do saber também corresponde a uma escala evolutiva ou progressiva.

Como animais um tantinho mais aprimorados do ponto de vista cognitivo - tendo em vista o tamanho e a estrutura de nosso cérebro - possuímos a capacidade de abstrair num grau mais acurado do que qualquer outro ser, capacidade por meio da qual formulamos conceitos tanto mais elaborados e aprofundamos a senda do conhecimento até um nível jamais atingido por qualquer outra forma de vida. Da mesma maneira nossos irmãos animais percebem e compreendem numa escala inferior, todavia válida e certa...

Quanto a observação de Aenesidemus a respeito dos diferentes niveis de percepção cabe dizer que se tais fenômenos encontram-se em escalas ou niveis diferentes não pode haver qualquer contradição entre eles. Pois a contradição só pode existir em se tratando da mesma categoria ou aspecto... nível, escala ou faixa. Seria como negarmos a existência das marés só porque variam de níveis ou a existência da temperatura pelo mesmo motivo...

Variam de fato os niveis de percepção conforme o estado de perfeição ou acuidade do aparelho sensorial.

Isto não quer dizer que aquilo que é percebido pelos aparelhos mais rústicos e grosseiros seja falso, ilusório ou inexistente; percepção fragmentária, parcial ou mesmo um tanto superficial e obscura jamais equivalerá a percepção errônea...

Neste caso a percepção duma lajota que compõe da calçada ou mesmo dum fragmento da lajota que compõe a calçada por uma barata ou por um rato é tão real quanto a percepção da integralidade da calçada pelo homem; a diferença esta apenas na proporção mas não na substância - por sinal percebida por ambos os seres como sólida e não como líquida ou vaporosa - na escala e não na coisa ou no ser em si.

A simples ideia duma escala de percepções e sensações segundo o 'tamanho' ou a complexidade do ser em questão já nos remete de imediato a suposição de que há uma escala de participação no conhecimento da verdade. Neste caso os conhecimentos obtidos pelos animais mais evoluídos e capacitados completam e aperfeiçoam os conhecimentos obtidos e adquiridos pelas formas de vidas mais elementares. Aqui podemos falar em elevação, ascensão e ampliação do conhecimento, antes de falarmos em contradições absolutas e invencíveis. São categorias de conhecimento ampliadas, aprofundadas e ultrapassadas com relação as quais a visão localizada ou limitada pela dimensão de cada ser percipiente vai assumindo cada vez mais e proporcionalmente uma visão de conjunto cada vez mais dilatada e complexa - té que da percepção dum pequeno fungo pela formiga atingimos a percepção do universo pelo homo sapiens, o homem capaz de saber.

Níveis, escalas e faixas de percepção e cognição vão se sucedendo segundo a capacidade de cada ser e os objetos examinados vão se tornando cada vez mais nítidos na medida em que a visão limitada das partes - que são reais - vai cedendo espaço a visão do todo.

D - "Quanta gente não fica doente unicamente por efeito da imaginação. É frequente vermos quem se faça sangrar, purgar e medicamentar para curar males que só existem porque os imagina ter." iden  Assim Descartes: "Com efeito haverá coisa mais íntima ou mais externa do que a dor? Pois não obstante soube eu da existência de algumas pessoas que mesmo tendo os braços ou as pernas amputados, que apesar disto, sofriam sensações de dor em tais partes do corpo das quais estavam já privadas e isto me fez sustentar e supor que jamais poderia estar realmente certo de que qualquer um dos membros doesse de fato embora eu mesmo sentisse dor." in Meditações sobre a Filosofia primeira

M - Certamente que a imaginação ou a fantasia exerce um grande influxo sob o corpo e a própria vida humana. Quem haverá de nega-lo?

Desde Mesmer, isto é, há mais de dois séculos que os fenômenos relacionados a auto e a hetero sugestão tem sido amplamente estudados.

Todavia do fato segundo, sob certas circunstâncias peculiares e 'anormais', a imaginação seja capaz de 'plasmar' um certo tipo de personalidade ou cárater, não nos autoriza a concluir que todos os seres humanos sejam dominados por ela do mesmo modo, no mesmo grau e independentemente das circunstâncias; a ponto de tornar-lhes impossível a apreensão da realidade externa e objetiva e a possibilidade de marcar alguma distinção entre os dois estados considerados. Mesmo porque o influxo da fantasia sob a personalidade pode ser contido por meio da disciplina e o cárater moldado numa perspectiva tanto mais realista...

Alias, se assim fosse, diante dos mesmos objetos externos ou elementos do mundo, cada qual teria uma percepção ou experiência totalmente diversa das demais, conforme é típico da imaginação variar assumindo formas extravagantes e incomuns. Dizer-se-ia que caindo na extravagância, face a uma realidade prosaica, a fantasia trai a si mesma e revela-se publicamente.

A própria imaginação que se desvia por completo da realidade e que por assim dizer, entrega-se ao delírio e a outros estados mórbidos parece ser antes uma exceção ou anormalidade que uma constante. Somos capazes de ter experiências semelhantes ou comuns e sobre elas construir um patrimônio de saberes igualmente comum porque recorremos a percepção e a reflexão, fenômenos corporal e estruturalmente bem distintos da vontade e da imaginação inda que muitas vezes influenciados por elas; mormente nos casos em que a educação deixou de cumprir com seu papel... pois um dos principais objetivos da formação intelectual é justamente emancipar a percepção e a reflexão face o império subjetivo da vontade; o que implica antes de tudo distinguir as duas categorias de fenômenos: o imaginativo do experiencial, dando preferência a este em detrimento daquele.

Caso todos os homens fossem completamente dominados pela imaginação - com sua ampla gama de manifestações - a convergência experimental, que está na base da ciência jamais se verificaria e jamais se chegaria a qualquer acordo ou consenso. ( Como no caso da mítica Babel ) Entende-mo-nos e concordamos justamente graças ao fenômeno da percepção e identidade dos conceitos formulados a partir dela.

"Concluímos em favor duma realidade objetiva porque a impressão é COMUM É DIVERSOS SERES PENSANTES E PODERIA ATÉ SER COMUM A TODOS." Henri Poincaré in 'O valor da ciência'

A simples ideia duma fantasia absoluta parece bastante problemática uma vez que o conceito de fantasia ou de imaginação contrapõem-se ao conceito de realidade; supondo que ao menos algo a que nos contrapomos seja real... perdendo seu contraponto real e assumindo um cárater absoluto ou exclusivo a fantasia passa a assumir o cárater da realidade. A mesma ambivalência torna-nos capazes de discernir entre os estados de espírito provocados pela imaginação e por assim dizer 'anormais' e os atos conscientes movidos pelo intelecto; e sequer poderíamos conceituar o 'sugestionável' sem admitir o não sugestionável...

Nem podemos compreender que alguém podendo criar seu próprio mundo por meio da imaginação ou da fantasia crie para si mesmo um tipo de mundo tão indesejável, vulgar e grosseiro em que prevalecem a miséria, a enfermidade, a decrepitude, a dor e a morte; além da ignorância é claro... posto esta que qualquer um de nós eliminaria tais fenômenos de seu mundo imaginário.

Portanto ao nos depararmos com um tipo de mundo real; que esta em franca oposição face a nossos desejos e vontade somos levados a concluir que não somos seus produtores e que sua existência não é determinada por nossa imaginação ou fantasia; antes nossos devaneios, em termos de imaginação, correspondem a uma espécie de fuga diante duma realidade que percebemos ser muito difícil de transformar.


D - "Lembro-me das coisas que quisera esquecer e esqueço das que desejara lembrar."

M - Que quer dizer Montaigne com tais palavras?

D - Deseja ressaltar os caprichos de nossa memória.

M - Hoje no entanto - no mundo post freudiano - sabemos que existem dos tipos de memória: a consciente, que temos a flor do intelecto e quase sempre a nossa disposição e a inconsciente, que sequer julgamos possuir.

As pesquisas todavia chegaram a conclusão de que percepção ou experiência alguma perde-se, mas que permanecem todas fixadas, gravadas ou arquivadas em nossa mente.

Por vezes elas afloram numa sessão de hipnose, num sonho ou num delírio febril, patenteando que estão ali subjacentes, e sem embargo vivas, apenas aguardando algum tipo de estímulo.

Quanto as percepções e experiências que permanecem na esfera da consciência, existe um critério bastante exato para elas, nossos sentimentos ou estado emocional. Marca-nos tudo aquilo que nos proporcionou prazer ou dor, alegria ou sofrimento, num grau mais ou menos profundo ou intenso.

Por isso quando desejo esquecer de algo que me desagrada, lembro-me, e quando desejo gravar uma informação de certa forma interessante para o intelecto, mas desligada de qualquer conteúdo emotivo ou sentimental, esqueço-a.

Felizmente graças as modernas descobertas feitas no terreno da psicologia, os educadores e pedagogos estão cada vez mais tentando associar sensações agradáveis e prazerosas a construção do saber e procurando com isso facilitar sua retenção na esfera da consciência.

Há também uma série de jogos e estratégias que tendem a facilitar a memorização de dados e informações que julguemos importantes.

Quanto melhor conhecermos o mecanismo da memória tanto melhor poderemos explora-lo e tornar ainda mais fecundos nossos esforços cognitivos em demanda da verdade.

D - Demócrito vendo que os anos lhe haviam enfraquecido as faculdades, preferiu matar-se e assim voluntariamente abandonar a existência.

M - Da-me a interpretação do 'homem' sobre tal citação.

D - Quiz insinuar que conforme envelhecemos nossas faculdades sensitivas e intelectuais declinam tornando dificil ou até mesmo impossivel a aquisição do saber. Este juizo cético também corresponde a um dos 'Tropói' de Aenesidemus: "Os dados variam ao longo do tempo acompanhando as alterações físicas."

M - Uma coisa é o intelecto vir a luz já arruinado por completo ou inapto para adquirir o saber e outra totalmente distinta é seu enfraquecimento subsequente e gradativo, bem como dos sentidos que lhe servem como portas e janelas para o mundo material. No primeiro caso temos um fenômeno até certo ponto incomum e que corresponde ao retardamento mental enquanto no segundo tempos dois tipos de fenômenos mais ou menos comuns que fazem parte a dinâmica da própria natureza: a senilidade e a falta de acuidade sensorial...

No primeiro caso podemos citar a esclerose, o alzheimer, etc & no segundo a cegueira, surdez, paralisia, etc  
e somos inclinados a crer que a segunda categoria de fenômenos seja mais frequente e comum.

Tornemos no entanto ao raciocínio. Pois se algo - como sentidos ou intelecto - declina, é porque antes gozou de integridade, potência e plenitude.

Alias nós não questionamos este 'Tropo' pelo simples fato de que vinculamos as percepções a um aparelho sensorial de natureza física ou material, o qual por isso mesmo acompanha o organismo corpóreo em suas alterações e declínio. Portanto quando falamos em produção científica, em reflexão filosófica e em termos de experimentação e contato com a realidade; salientamos a posse dum aparelho sensorial e cognitivo em perfeitas condições; mormente durante da idade adulta ou situada entre a infância e a decrepitude.

Que a uma pessoa idosa seja bem mais dificil ou até impossivel assimilar certas percepções ou julga-las corretamente, concedemos sem maiores objeções... também é impossivel a maioria dos idosos correr ou carregar muito peso... sem que a partir daí a realidade dos adultos que correm e carregam peso possa ser negada.

Eis porque afirmar que os sentidos e o intelecto falham da mesma maneira em todos os seres humanos, inclusive nos adultos e nos mais jovens, sem qualquer distinção etária, é pura falácia. 

Pois o que se aplica a uma categoria dos seres humanos, sendo típico e característico dela; não se pode aplicar a espécie como um todo...

Todo o ser jovem, adulto, ou mesmo idoso cujos órgãos dos sentidos sejam perfeitos e o intelecto saudável, é capaz tanto de captar impressões e imagens do mundo quanto de rete-las na memória e de analisa-las corretamente -apreendendo verdades e construindo conceitos universalmente validos e verdadeiros por via de abstração - segundo determinados esquemas estruturais. O resultado de tudo isto é a formulação de conceitos, juízos, leis e teorias possivelmente exatos. Tal o objetivo ou fim da vida intelectual.

Enfim as percepções distintas alegadas por pessoas deficientes ou idosas - cujos aparelhos sensoriais estejam comprometidos - não podem servir de pretexto para se questionar a validade das percepções comunitariamente apreendidas por todos aqueles que se encontram nas condições ideais de saúde ou como se diz absolutamente saudáveis e portanto perfeitamente aptos para deslindar a realidade. Do contrário deveriamos admitir que os defeitos pertinentes a uma transmissão executada por um aparelho de rádio ou de TV, avariados, implica que todas as transmissões executadas por aparelhos em boas condições sejam falsas!!!

Convém salientar ainda que embora a maior parte das pessoas, ao envelhecer sofra consideráveis perdas no que concerne a acuidade sensorial; uma significativa minoria delas tem sido capaz de conservar até o fim e sem qualquer tipo de alteração a acuidade mental ou como se diz a capacidade reflexiva em torno de uma lógica esquemática ou estrutural. De modo que tendo acesso a dados coletados pela percepção alheia são capazes de interpreta-los, associa-los e de compreende-los do mesmo modo e maneira que as pessoas mais jovens... Donde se infere que sob o aspecto puramente mental ou racional nem todos os organismos humanos conhecem significativo declínio na medida em que envelhecem.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Elementos implícitos no juizo: o princípio de contradição.

D - Talvez os objetos sejam verdadeiros apenas em sim mesmos.

M - Da mesma forma como o eu é verdadeiro para si mesmo, os objetos conhecidos tornam-se verdadeiros para ele. Assim a verdade ontológica presente no objeto tende a se tornar-se lógica na medida em que vem a ser absorvida pelo sujeito cognoscente.

D - Como?

M  - Penso que não podemos deixar de percebe-los como de fato são na medida em que participam todos daquelas categorias cuja veracidade já apontamos.

Examinemos o primeiro deles, referente ao ser:

Observe que ao negarmos sua plena certeza, negando-a afirma-mo-la simultaneamente.

D - Agora complicou!

M - Então preste bastante atenção: Quem nega a veracidade do ser ipso facto reconhece que a negação dele, isto é o não ser, é diferente de sua afirmação (o ser), ora reconhecer que a afirmação não é a mesma coisa que a negação no que tange ao ser é admitir o princípio que estamos pondo em duvida...

Conclusão: a condição mesma do ser em oposição ao não ser, conduz-nos naturalmente ao princípio de contradição. São conceitos de certa forma aparentados, pois se pudéssemos atingir ou anular um deles, comprometeríamos o outro, destruiríamos as demais categorias e invalidaríamos a própria estrutura do juízo.

Resta-nos concluir que o ser, o eu e o princípio de contradição são conceitos inter relacionados ou relativos uns aos outros.

D - Penso que esta categoria de 'ser' seja demasiado genérica ou abstrata; assim não sabemos de que ser se trata...

M - Podes, se preferires, imaginar este ser como o mundo externo a ti mesmo ou os elementos do mundo.

D - Ainda me parece demasiado especulativo.

M - No entanto como assevera Descartes nada de mais certo após o eu:

"Sabendo que comumente os sentidos comportam mais o testemunho da verdade que o da falsidade quanto as coisas que dizem respeito ao conforto e ao desconforto do meu corpo...

Percebi que este meu corpo esta situado entre outros tantos corpos, QUE O PODIAM AFETAR DE MANERIA DIVERSA: AGRADÁVEL OU DESAGRÁDAVEL...  

Percebia assim razões que me levavam a crer que aqueles objetos e coisas eram distintos de meu próprio pensamento, a saber: os corpos donde procediam tais sensações pareciam manifestar-se  SEM QUE HOUVESSE QUALQUER TIPO DE CONSENTIMENTO DE MINHA PARTE, DE MODO QUE NÃO ME ERA DADO, PERCEBER A MEU TALANTE UM OBJETO QUALQUER PORQUE ASPIRASSE OU DEIXAR DE PERCEBER A MEU TALANTE QUALQUER OBJETO POSTO DIANTE DE MIM...

Por outro lado perquirindo minha memória eu podia como que perceber que alguns desses objetos jamais havia estado lá; a ponto de surpreender-me quando tomei conhecimento deles; como pois podiam estar presentes em mim e serem causadas por mim se me surpreendiam??? Então eu cogitava terem sido causadas em mim por outras coisas...

Assim a natureza ensina-me que em volta de mim mesmo existem outras entidades ou objetos, alguns dos quais desejo aproximar-me e outros dos quais tendo a afastar-me...  umas me proporcionam deleite ou conforto e outras desconforto ou dor. " in "Meditações sobre a Filosofia primeira"

D - Agora compreendo.

M - Então expõe.

D - Três são os indícios que nos autorizam a concluir favoravelmente a respeito da realidade do mundo externo ao eu:


  • Não tenho pleno controle a respeito daquilo que percebo: captando fenômenos e sensações que não desejaria captar e não sendo capaz de produzir sempre e infalivelmente os fenômenos e sensações que desejaria perceber.
  • Surpreendo-me diante de certos fenômenos; mormente daqueles que classifico como 'novos' ou até então ignorados por mim. Por outro lado, caso eu mesmo fosse responsável pela produção dos fenômenos que percebo não teria porque ignora-los ou surpreender-me face a eles...
  • As ideias sensíveis ou percepções atuam sobre mim, muitas deves de maneria indesejável produzindo desconforto e dor. Como poderia proceder de mim mesmo uma sensação que não só se opõe a mim ou a minha vontade; mas que seria capaz de destruir meu próprio ser???

M - Exato. Donde só nos resta admitir a existência de um mundo externo a nós e irredutível a nosso pensamento e a nossa vontade; um mundo com que dialogamos tendo em vista a obtenção do conhecimento.


Elementos implícitos no juizo: a afirmação do 'eu'

D - Não será o 'eu' uma construção puramente imaginária, hipotética e artificial?

M - Suponhamos por um instante apenas que você esteja equivocado quanto a esta suposição?

D - Que resulta daí?

M - Se supõe ou se equívoca é porque existe certamente, pois aquilo que não existe não pode supor ou errar. Para supor, errar, acertar, julgar, opinar e mesmo negar ou duvidar é preciso antes de tudo ser ou existir.

Porque existo se erro como posso errar ao afirmar minha existência?  Porque existo se duvido como duvidar de minha própria realidade??

"Uma vez que eu existo, ainda que me equivoque, sem dúvida alguma ao afirmar a realidade de minha existência, nisto não me equivoco." Agostinho de Hipona, in "Civita Dei" I,11

"Se duvida vive, memora os motivos de sua dúvida, percebe-se duvidando, deseja estar certo ao duvidar, pensa, sabe que pensa, julga que não deve assentir temerariamente. Quem quer que esteja duvidando, de tudo isto não pode duvidar, pois tais fenômenos são condições necessárias ao ato de duvidar e sem eles duvidar seria impossível." iden, "De Trinitate" X,14 p 45

"O homem ao pensar algo percebe que existe." sintetiza o aquinense. E com razão na medida em que o homem sabe discernir entre si mesmo e seu pensamento; Sabe que seu pensamento vive de si, internamente e portanto que existe externa e materialmente enquanto veículo, continente ou suporte de seu próprio universo mental.

Tal juízo, sem embargo, é melhor conhecido sob a fórmula cartesiana:

"Cogito, ergo sum" ou "Penso logo existo."

A qual é por assim dizer a válvula de escape do cartesianismo quanto ao ceticismo universal.

Efetivamente, levando-se em conta o dogmatismo ingênuo e tolo cultivado não só pelos medievos nossos ancestrais - que davam crédito a tudo quanto se achava escrito nos livros e que encaravam certas autoridades como infáliveis e inquestionáveis (Chegando inclusive a opor o veredito das mesmas a experiência comum e ao mundo real) - mas por boa parte da humanidade contemporânea - Que sem mais dá crédito as fanfarronices do Dan Bronw - Descartes teve de levantar a bandeira da revolução ou do iconoclasmo, alegando que todo e qualquer juízo, de afirmação ou negação, deve proceder sempre da investigação e logo que se deve suspeitar de tudo quanto não tenha sido suficientemente investigado e demonstrado.

Consequentemente susteve ele a necessidade de acautelar-se face a tudo quanto a generalidade da espécie tem tido em conta de absolutamente certo e indubitável, partindo de preconceitos gratuitos e inverificáveis; isto é, o senso comum.

Todavia, ao destruir as crendices e fábulas aceitas pelo gênero humano, concedeu-nos Descartes uma nova ferramenta ou instrumento com que ENCETAR A RECONSTRUÇÃO DO SABER: a certeza indubitável no que concerne a existência do eu ou da consciência, ponto de partida para a aquisição do conhecimento em moldes tanto mais seguros sejam reflexivos ou empíricos.

O argumento de Descartes é duma simplicidade infantil, e por isso mesmo, como dizia Jaspers, empolgante: Todos nós temos certeza de que pensamos, até mesmo o cético sabe que pensa embora tente reduzir seus pensamentos todos a dúvida... e esta certeza é imediata e pura ou como dizem outros intuitiva.

E da certeza do pensamento, comum a todos os seres, passa a certeza da existência ou do eu, pois só posso pensar porque existo e se não existisse certamente não poderia pensar.

Eis porque não atacamos nossas próprias imagens refletidas num espelho. Porque reconhecemos a nós mesmos e não duvidamos... porque sendo auto conscientes experimentamos a própria existência.

Daí: penso logo...

Penso justamente porque existo, porque existo separadamente dos objetos em que penso e porque sou senhor de minha reflexão ou atividade intelectual. Penso enquanto unidade auto-consciente de pensamento, distinta de todos os seres, penso enquanto eu.

"Assim percebo antes de tudo que tenho cabeça, mãos e pés; e todos os demais membros de que se compõe este meu corpo, que eu considerava como parte de mim ou até mesmo como meu todo... Não era pois sem certa razão que eu acreditava que este corpo, a que por direito particular chamava meu, me pertencia mais propriamente e mais estreitamente do que qualquer outra coisa: pois jamais me era dado apartar-me dele, e sentia nele e por ele, inúmeras sensações e desejos; e nas partes de que ele se compunha discernia ora dor ora prazer, mas não nas partes dos demais corpos que de mim mesmo estavam separados." Descartes in 'Meditações sobre a Filosofia primeira.'

D - logo o 'eu' existe.

M - O próprio Sextus admitiu que pudessemos construir juízos a respeito de nossa experiência interna e subjetiva a respeito de nossas sensações, sentimentos e estados afetivos. Hume por sua vez - no 'Tratado da natureza humana' - também admitia que tais noções intuitivas e imediatas fossem verídicas.

D - Não seria o eu uma série de experiências sucessivas umas as outras e artificialmente ligadas entre si?

M - Caso o 'eu' correspondesse a uma série de experiências ou melhor a cada experiência vivida pelo sujeito, jamais seria lícito empregar este termo no singular. Pois como cada experiência ou ato perceptivo distingui-se dos demais pela diversidade do objeto com que entra em contato, possuiríamos uma multidão de 'eus' distintos uns dos outros; um para cada experiência... Sabemos no entanto que ao invés de ser a própria experiência ou melhor cada uma das experiência; o eu corresponde por assim dizer a uma entidade coordenadora que sintetiza ou unifica nossas experiência distintas produzindo um tipo de conhecimento tanto mais elaborado. Intuitivamente o 'eu' é perfeitamente capaz de perceber-se como diverso de suas operações - Como a percepção e a produção do conhecimento - e de reconhecer a si mesmo como elemento diretivo de condição superior.

D - Quais as evidências favoráveis a existência do 'Eu'?

M - Penso que a evidência mais forte é justamente o fato segundo o qual as experiências distinguem-se  ontologicamente umas das outras e sucedem-se temporalmente, sem que a personalidade cognoscente fracione-se por completo. Antes o mesmo eu é capaz não só de abarcar como de sintetizar as experiências idas e vividas separadas umas das outras no tempo e no espaço... destarte em que pese a fragmentação externa - em termos de tempo e espaço - internamente o 'Eu' associa e combina os dados recolhidos conferindo-lhes certa unidade. Eis porque compreendemos que o eu transcende suas habilidades ou capacidades... Embora o 'eu' perceba-se diferente a cada etapa do processo de construção do saber não averiguamos um tipo de transformação radical que impeça-o de reconhecer-se a si mesmo ao cabo de todo processo... sabe o 'eu' que muda ao menos em parte, quanto ao conhecimento do mundo externo, ignora no entanto que mude por completo a ponto de tornar-se desconhecido a si mesmo, qual fosse uma soma de 'eus' completamente distintos.

Esta unidade coordenadora, operacional ou diretiva que transcende a capacidade/habilidade experiencial é o EU.

Elementos implícitos no juizo: a afirmação do 'ser'

D - Explica-me a relação do juízo com o 'ser'

M - Qualquer ato do conhecimento pressupõe determinado objeto a ser conhecido.

Só posso saber na medida que há algo a ser sabido por mim, pois este algo é o conteúdo do saber e o saber seu continente.

Evidentemente que o ato de conhecer e o objeto conhecido distinguem-se do nada e se lhes opõe.

Pois o nada, inexistindo ou não sendo, não pode conhecer e tampouco ser conhecido.

Ora tudo quanto opõe-se ao nada ou aquilo que não é, é; é o 'ser'.

Logo todo ato cognitivo esta fundamentado sobre o pressuposto necessário do ser, que é o conceito mais simples e mais extenso que possuímos, abarcando todos os objetos que existem pelo simples fato de existirem.

Rejeitar a noção de 'ser' é impossível aquele que enceta qualquer tipo ou categoria de juízo.

D - Parece-me absolutamente certo.

quarta-feira, 4 de março de 2009

Todo homem é capaz de captar algumas verdades imediatas ou conceitos indemonstráveis.

D - Vossa paternidade quer dizer com isto que todo homem é capaz de apreender algumas verdades elementares e conceitos indemonstráveis dos quais não é possível duvidar?

M - Nem mais, nem menos.

D - Neste caso quais seriam tais verdades?

M - Em seus juizos expontâneos e anteriores a qualquer crítica, o homem aceita implicitamente como verdadeiras:

# A certeza a respeito de sua própria existência pessoal ou EU ao que denominamos auto percepção.. (1)

# A afirmação do ser. (2)

# A validade do princípio de contradição, codificado por Parmênides de Eléia. (3)


No exercício mesmo de suas faculdades cognitivas o homem tem plena consciência de estar, percebendo, conhecendo, experimentando, sentindo, entendendo, querendo... e não pode negar sinceramente o significado de tais estados de espírito e disposições de alma, sem sem opor ao testemunho interno de sua consciência.

D - Trata-se pois de conhecer o ato de conhecer?

M - Sim, e essa consciência do conhecer, implica necessariamente em três aceitações:

- De se estar conhecendo algo, algo que existe e não o nada ou algo inexistente.

- De distinguir os objetos uns dos outros.

- De distinguir-se do objeto e reconhecer-se como unidade consciente: o eu.

Da primeira: o que se opõe ao nada é o ser; e percebemos que a noção do ser esta embutida em todo e qualquer juízo formulado

Da segunda: discernir entre os objetos significa negar que determinado objeto identifique-se ou confunda-se com os demais, dando por suposta sua especificidade. Ora isto é reconhecer o clássico princípio formulado pelo Eleata: algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo quanto ao mesmo aspecto.

Da terceira: Sei que sou uma entidade externa ao objeto conhecido e independente dele, reconheço pois ou meu eu ou reconheço-me como um eu.

D - Portanto todo o que exerce juizo, por mais simples que seja admite implicitamente: O ser, o eu e o princípio de contradição?

M- E admite tal gênero de conceito como anteriores a qualquer averiguação crítica, pois fazem parte efetiva de qualquer juízo construído.

Não podemos formular um único juízo que não comporte o ser, o eu e o princípio de contradição.

Logo tais certezas, universalmente aceitas, são logicamente legítimas, já porque vemos com plena evidência que a respeito delas não há a mínima possibilidade de equivoco.

Até aqui - Rosmini

D - Não seria o caso de tais certezas serem falsas ou aparentes?

M - Afirmar que as noções de ser, do eu e do princípio de contradição comportam erro ou falsidade equivaleria a postular o absoluto da ilusão.

Todavia quando afirmo a totalidade da ilusão, converto a ilusão em realidade, uma vez que o conceito de ilusão retida seu significado do conceito de realidade, com o qual esta relacionado por via de oposição. Só pode haver alguma ilusão caso admitamos alguma realidade... postular uma ilusão absoluta que exclua qualquer tipo de realidade é converter-la numa realidade que não conhece oposição.

Sem embargo ao rejeitar o conceito de ilusão universal como absurdo, afirmo o princípio de contradição como exato.

D - Não vejo porque a possibilidade da ilusão ou do erro absoluto, deva ser descartada.

M - Se pensar bem verá que a ilusão ou o erro não são formas de existências reais, mas privações de certos aspectos ou formas de existir.

D - Não entendo...

M - O erro nada mais é do que a ausência ou privação da verdade, trata-se sempre dum conceito relativo a verdade e não dum conceito absoluto. O erro só existe em oposição a verdade e como negação dela, não em si mesmo...

Caso houvesse apenas erro e nada mais - ou seja excluída a oposição ou a verdade - ele mesmo já não seria erro, mas verdade...

A verdade e a realidade expressam o ser, ou seja aquilo que é e por isso mesmo podem corresponde a um tipo de existência absoluta. Já o erro e a ilusão, enquanto privações ou negações do ser subsistem apenas em conexão com a afirmação ou a posse do mesmo... em si mesmos inexistem e tampouco poderiam comportar uma categoria absoluta de existência.

D - Assim a verdade - e sobretudo a verdade positiva - expressando uma conformidade com o ser, subsistiria nele enquanto o erro afirmando do ser o que não é ou negando o que é, subsistiria apenas como ideia na mente carnal. Seria uma mera palavra que expressa um juízo frustrado... e jamais uma entidade real.

M - Uma mera palavra que expressa um aborto ou uma frustração do ato cognitivo, algo que não se realiza, algo relativo e que não pode subsistir em si e por si... um espectro ou fantasma isento de concretude.

Não a ilusão ou o erro não podem ser absolutos uma vez que sua posição é antitético ou relacional.

Em suma como seríamos capazes de conceber o erro sem sua contrapartida: a verdade?

A ilusão sem a realidade?

A dúvida sem a certeza?

Como poderíamos formular o conceito de ilusão senão tendo formulado anteriormente o conceito de realidade?

Como poderíamos imaginar o estado de dúvida sem o pressuposto da certeza?

Como poderíamos compreender a privação sem a posse?

Concluindo: a existência do erro, da ilusão, da dúvida, etcdeve supor sempre, ao menos como possibilidade, a existência da verdade, a realidade, a certeza, etc ; dos quais aqueles tiram sua realidade subjetiva ou conceitual por via de privação.

D - Seria possível ampliar e aprofundar estas reflexões sobre o juízo até atingirmos a percepção?

M - Perfeitamente possível.

D - Como?

M - Imaginemos por um instante qualquer uma de nossas percepções, a visão por exemplo. Sem cogitarmos se os dados recolhidos pela visão estão ou não presentes em cada objeto gostaria de saber o que caracteriza a esta forma particular de percepção?

D - A sensação da cor ou das cores.

M - Perfeito. Agora diz-me o que és capaz de intuir a respeito desta sensação.

D - Ao captar a sensação da cor sou capaz de distinguir três coisas:


  • Que o ato de ver possui cárater e objeto específicos, que distingue-os das demais formas de percepção quais sejam audição ou paladar.
  • Que este ato nos pertence com toda propriedade. Simplesmente, sendo dotado de olhos, vejo.
  • Que a cor procede de fora de mim ou de uma dimensão exterior a minha pessoa.
M - Excelente. Podes demonstrar as distinções feitas acima?

D - Apenas sei com imediata e plena certeza que seja assim e julgo que todos os seres humanos sejam perfeitamente capazes de sabe-lo do mesmo modo.

M - Trata-se portanto duma apreensão total, segura e certa (intuitiva) cuja evidência é imediata e indubitável?

D - É o que me parece.

M - Compreendo. Agora és capaz de dizer-nos que inferências podemos extrair das distinções captadas?

D -

  • Que nossas sensações/percepções são distintas umas das outras e jamais se confundem.
  • Que o 'Eu' funciona como elemento operativo e unificador do aparelho sensorial e das impressões colhidas por ele
  • Que a cor, o som ou o odor; independentemente de sua perfeita identidade com o fenômeno, procede de um objeto externo que seja colorido, sonoro ou odorífero. 
M - Do contrário:


  • O ouvido seria capaz de captar odores, a visão de captar sons ou o paladar capaz de captar cores.
  • As distintas impressões jamais poderiam ser conectadas ou associadas.
  • A sensação subsistiria em si mesma...
Donde inferimos necessariamente a existência: do 'Eu', do mundo externo e o princípio de contradição.



terça-feira, 3 de março de 2009

Todo cético exerce juizo naturalmente...

D - Que outras falhas ou defeitos possui a argumentação cética?

M - Várias, no entanto, começemos por esta: Todo o homem sabe natural e intuitivamente que seu aparelho cognitivo esta disposto para o conhecimento tal e qual uma flor esta disposta para o fruto; esta certeza elementar esta dentro de nós mesmos e apenas fazendo violência a nossa condição racional podemos nega-la.

D - Isto é demonstrável?

M - Demonstrar algo que faz parte de nossa auto consciência ou que seja axiomático é petição de princípio.

Não se demonstra aquilo que por assim dizer se sabe com certeza imediata.

Demonstrar é partir do que é evidente por si mesmo, intuitivo e axiomático para aquilo que não o é.

Só posso demonstrar o que não é evidente por si mesmo ou aquilo que é externo a nós.

Cada pessoa no entanto possuí dentro de si mesma um testemunho a respeito desta direção. E sabe que ao rejeita-lo sabe que faz violência a uma parte de si mesma.

Possuir conhecimentos certos supõe que o intelecto seja capaz de comporta-los, resumindo: uma demonstração intelectual a respeito da capacidade do intelecto já supõe sua capacidade...

D - Como pois sair deste impasse?

M - Provando que todo cético possui algum tipo de conhecimento.

D - Passe a prova.

M - Algumas raras vezes o cético é pilhado dizendo: isto é ou isto não é. Todo cético faz afirmações e negações deste tipo por mais que fiscalize ou policie a si mesmo.

Em filosofia, como já dissemos, tais afirmações ou negações recebem a designação de juízos, pois o intelecto esta examinando o objeto com o objetivo de verificar se esta ou não em posse de determinada qualidade ou predicado.

Ora, ao exercer este juízo espontâneo ou forçado, o cético supõe - ao menos inconscientemente - a capacidade do intelecto exerce-lo, do contrário se absteria sempre e sem qualquer dificuldade; pois tudo quanto pertence a natureza e esta de acordo com ela, facilmente segue seu curso...

A consciência ou subconsciência no entanto sabe muito bem que seu ato é válido e verdadeiro e que age segundo sua própria condição e capacidade. Eis porque enceta-o apesar das prevenções, coisa que do contrário jamais faria.

Demos, ainda esta vez, a palavra a Descartes: "Assim pude observar que os juízos que costumava a fazer a respeito dos objetos, apareciam em meu espírito antes mesmo que eu tivesse tempo suficiente para questionar os motivos que me levavam a enceta-los." in "Meditações sobre a Filosofia primeira" 

Ou dirá o cético que sua vontade é constrangida pela tirania do intelecto???

Uma vez que o homem produz espontaneamente juízos, que são atos de conhecimento, temos evidência de que o intelecto reconhece a si mesmo como apto para julgar e conhecer.

Supostamente a vontade não deseja conhecer - talvez porque o resultado obtido não esteja de acordo com suas aspirações e desejos - neste caso porém, estamos diante dum problema volitivo ou moral... e não dum problema gnoseológico.

Ao menos em alguns casos o ceticismo não passa duma espécie de comodismo ou preguiça tendo em vista as consequências práticas do conhecimento adquirido, seja a necessidade de se agir e viver de acordo com ele ou a de lutar para modificar o mundo ou a sociedade que temos... Rejeitar a possibilidade do conhecimento dispensaria o homem do compromisso de tentar transformar uma realidade que ainda não atingiu seu 'status' ideal ou de construir seu próprio futuro...

D - Mas como o intelecto é capaz de conhecer sua própria natureza?

M- Porque comporta um sentido interno de auto-consciência... De fato o intelecto não é um princípio estático ou passivo, mas dinâmico e por isso mesmo capaz de evolver-se ou de voltar-se conscientemente sobre si mesmo, examinando e reexaminando suas experiências idas e vividas... conhecendo-se enfim.

A verdade muitas vezes é percebida quando o intelecto volta-se sobre seu próprio ato, conhecendo não apenas a si, mas sua perfeita conformidade com o aspecto do objeto apreendido.

Daí o sentido da palavra Refletir ou Re flectere - curvar-se ou voltar-se sobre sí. Reflete o intelecto humano quando a razão voltada sobre si mesma retoma qualquer assunto tanto sob o mesmo aspecto quanto sob aspecto diverso ampliando-se ou expandindo-se.

Eis porque somos capazes dizer: estou pensando, estou meditando, estou ponderando, estou analisando ou estou percebendo que aprendo. Quando nos damos conta de que aprendemos, o ceticismo recebe em si um golpe de morte...

A própria existência de Escolas dos mais diversos níveis - desde escolas de costura e culinária até escolas filosóficas (como a Pitagórica, a Jônica, a Eleata, a Atomística, etc bem como a Acadêmia e o Líceu) testifica contra o ceticismo, pois; caso ele fosse verdadeiro, ela (a escola) seria uma farsa e uma farsa com que se gasta muito tempo e dinheiro. Supõe ela - instituição escola - ao menos uma coisa: a transmissão do saber.... Do contrário extingui-se sua função e ela perde todo seu sentido e sua razão de ser...

D - Como poderia o intelecto exercer juízo se antes de exerce-lo não tivesse plena consciência de seu potencial cognitivo?

M - Poderia, como as vezes se sucede, errar por precipitação da vontade, todavia, jamais se atreveria a negar ou a afirmar qualquer coisa, se não tivesse consciência a respeito desta aptidão.

Todo ato de juizo possui um valor crítico, pois implica num certo controle exercido pela vontade sobre o ato intelectual, para verificar se afirmando, afirma o que é, e negando, nega o que não é.

Caso tal ato fosse anti-natural, frívolo ou pernicioso não seria capaz de impor-se a uma vontade determinada; logo, se ao menos algumas vezes triunfa da vontade determinada a frustra-lo ou a impedi-lo é porque se trata de um ato natural, necessário e útil e não de uma ato artificioso, vão e ilusório.

Ceticismo incoerente e isento de vida





D - Imaginava que os céticos nada afirmassem ou negassem.

M - Era de se esperar que nada afirmassem ou negassem, abstendo-se de formular qualquer juízo, afinal é a meta a que se propuzeram...

Neste caso deveriam permanecer silenciosos, mudos e calados; pondo em dúvida o próprio ceticismo...

Tal atitude, no entanto, opõem-se as leis da vida, sendo por isso mesmo impraticável.

Assim os céticos todos caem nas malhas da suprema incoerência propondo entusiasticamente o ceticismo.

Noutras palavras: SABEM que é impossível SABER qualquer coisa... ENTÃO COMO SABEM O CETICISMO???

A contradição salta a vista e compromete de tal modo o pirronismo que ele cai pela base como a estátua de Nabucodorosor... ele que julgava ser o colosso de 'Rodes' da Filosofia...

Afinal todo cético supõe saber ao menos uma coisa: que não é capaz de saber... Ora quem é capaz de saber uma coisa... sabe e é capaz de saber outras tantas. Segundo a lei dos 'precedentes'...

Para postular que não posso saber qualquer coisa devo antes saber o que é saber, o que sou eu, o que é o objeto sabido...

D - Compreendo.

M - Outro aspecto curioso no que diz respeito aos céticos consiste em vê-los lidar com o aparato ou o vocabulário técnico da Filosofia.

D - ???

M - Ao dissertarem sobre as maravilhas do ceticismo os céticos parecem reconhecer a existência dos sentidos bem como certa 'realidade' no que tange aos conceitos, ao juízo, a afirmação, a negação, a certeza e a dúvida; ora isto implica admitir já alguma capacidade cognitiva e a existência de algum elemento exterior a si.

D - Tudo isto chega a ser patético.

M - Nada mais patético do que ver um cético pontificando a respeito da dúvida universal...

Todavia como já foi dito o ceticismo é impraticável.

Ao contrário da grande maioria dos sistemas; que podem ser vividos, executados ou postos em prática; e que por isso mesmo possuem um sentido vital, o ceticismo é uma doutrina absolutamente teórica, sempre restrita a livros e gabinetes; e por isso mesmo sem existência real ou aplicabilidade em termos de concreção; tal a sua suprema miséria. Trata-se dum sistema que nada acrescenta ao mundo e a vida; servindo no mais das vezes para justificar uma vida cômoda e descompromissada...

É um 'não levar o mundo a sério' e deixa-lo exatamente como está... neste sentido o ceticismo não deixa de ser reacionário ou conservador na medida em que se fecha e se recusa dialogar com o mundo tendo em vista sua transformação... No entanto como poderíamos ser capazes de transformar um objeto a respeito do qual ignoramos absolutamente tudo???

D - O que o senhor esta querendo dizer com isso?

M - Budismo, Judaismo, Islamismo, Cristianismo, Cooperativismo, Comunismo, Capitalismo, Socialismo, Pacifismo, etc são teorias ou doutrinas vitais ou seja capazes de serem vividas por seus profitentes e de inspirar suas ações; o ceticismo não é apto para ser posto em prática, executado ou vivido, é uma frustração no plano da existência, puro e simples jogo de palavras... algo incapaz de promover intervenções radicais por parte do sujeito ou de inspirar todo um ideal positivo...

No frigir dos ovos, no exercício do viver quotidiano, na arena ou palco da vida todo cético vive conforme os précitos do dogmatismo. Como um muçulmano vivendo como Judeu ou um comunista vivendo como capitalista!!!

Se esta doente não exita em procurar um médico e não um mecânico ou um veterinário; tenta selecionar um bom médico, evitando qualquer charlatão e por fim aceita ingerir algumas gotinhas de laudano ou uma injeção de penicilina, sem cogitar que se trate de cloro ou de arsênico... ou sem permitir que a dúvida impeça-o de por em prática a terapia indicada... pois aqui haveria risco de vir a morrer!!! Portanto diante da dor e da morte - que são fenômenos demasiado reais e assustadores - a dúvida absoluta sai pela porta dos fundos e cede lugar ao conhecimento...

Destarte o nosso vaidoso pensador ou teórico recebe o médico, sua reputação tarimbada, os exames indicados, a dieta e as drogas por ele administradas tal e qual são aceitos na realidade, sem cogitar que constituam qualquer outro tipo de 'fenômeno' ou sequer parar para pensar e exercer a dúvida enquanto lhe dói o dente, o ouvido, o rim ou o estomago... caso o cético duvidasse das dores que o acometem e dos atrozes sofrimentos que estiolam seu corpo; não aceitaria a aplicação de anestésicos... das ventosas, sinapismos, injeções, fumigações, massagens, etc

Tal o caso da Sra Eddy, fundadora da 'Ciência Cristã' uma organização ultra idealista e volutarista que rejeita a existência real de qualquer enfermidade. De fato em seus livros, a Dra Eddy, ensinava que a dor e a doença não passavam de ilusões produzidas pela mente carnal e que todos os homens possuiam o poder da cura pela fé; sem necessidade de médicos, dietas, remédios, terapias, intervenções cirúrgicas, etc No entanto, como chegou a casa dos noventa, a ilustre matriarca passou a receber vizitas de inumeros médicos, se bem que pela porta dos fundos de sua manssão... O mesmo se dá com os adeptos da Sei Cho No Ie e de outras tantas religiões que asseveram ser o mal uma ilusão, os quais também ficam doentes e morrem, passando quase sempre por algum consultório médico, ingerindo remédios e fazendo tentativas de tratamentos como todos os outros seres humanos... embora as ocultas ou seja secretamente.

Tal a curiosa sorte dos filhos de Pirro e Anaxarco

Pois ao atravessarem as avenidas mais movimentadas de nossas cidades ai deles se puserem em dúvida a cor das luzes do semáforo. Convém não duvidar igualmente das placas de trânsito... seguindo reto onde esta assinalo curva...

A propósito Laértius discorrendo sobre a vida de Pirro reproduz uma anedota composta pelos céticos segundo a qual "Ele não se preocupava com qualquer risco que encontrasse pelo caminho fossem carroças, cães ou precipícios." buscando dar aplicações a seu ceticismo...  dia houve porém em que cruzou com um cão raivoso e, tendo este se lançado contra ele, o patriarca do ceticismo pos-se a fugir dem desabalada carreira. Diante disto seus discípulos principiaram a gargalhar, ao que saiu-se ele com estas esclarecedoras palavras: "COISA DIFÍCIL É LUTAR CONTRA A NATUREZA."

Noutro passo refere o mesmo cronista que tendo o mestre de Pirro, Anaxarco tombado num poço, este teria impassivel e fiel ao princípio da ATARAXIA ou da despreocupação, cogitando se o poço era de fato um poço e Anaxarco de fato Anaxarco... 

Aenesidemus no entanto, asseverava que "Embora ele - Pirro - em seus discursos sustentasse a suspenção do juízo; vivia procedia de maneira comum como as demais pessoas.". Eis porque, segundo o já citado memorista parece ter atingido a quadra dos noventa anos... pois duvidando de tudo e fazendo tão pouco caso de tantas ameaças reais sequer haveria de ter chegado aos trinta...

Situações como aquelas que acabamos de descrever multiplicam-se ao infinito nas vidas dos filhos de Anaxarco e herdeiros de Tímon...

Pois no fim das contas todos eles costumam ler receitas, bulas de remédio e manuais de instalação sem fazer praça de sua caprichosa teoria.

Não duvidam que a Coca-Cola seja Coca-Cola supondo que haja cândida ou detergente em seu lugar... ou seja costumam acreditar no que esta escrito nos rótulos dos produtos e até mesmo observar as respectivas datas de validade... pois não desejam consumir algum produto vencido, duvidando de que causa-se algum dano a saúde...

Não duvidam que um cão bravo possa morder-los, que um fio desencapado dê choque ou que caso venha a pular do vigésimo andar de um prédio virá a morrer fatalmente... Cético não tentar voar fora de um avião nem cogita em respirar debaixo dágua sem bomba de oxigênio. E mordido por um cão ou uma cobra dirigir-se-a ao serviço de saúde para tomar soro ou vacina, sob pena de vir a óbito... e se algum de seus entes queridos sofrer algum tipo de acidente procederá exatamente como determinam os livrinhos de primeiros socorros ao invés de ficar parado olhando e cogitando se a situação é real ou não... dificilmente ele virá a por em dúvida que sua mãe ou seu filhinho levou um tombo e esfolou o joelho...

Eles sequer questionam seriamente se seus pais são de fato seus pais uma vez que não se recordam do próprio nascimento e Agostinho já disse que este tipo de certeza pertence aos domínios da fé ou da confiança no depoimento fornecido por terceiros. Cético algum pensa duas vezes em abraçar seu pai como verdadeiro pai ou em beijar sua mãe como legítima mãe, todavia bebes tem sido trocados em maternidades ou até mesmo raptados... sem que tais eventos sejam levados em consideração pela maior parte deles...

Imaginem alguém que tentasse efetivamente duvidar de tudo, e assim viver, coerentemente, segundo a norma e regra da incerteza geral. Em que se converteria tal pessoa?

Num paranóico, num problemático, num maníaco, num gorgota... Pois certezas e verdades há que são necessárias a estabilidade psíquica, moral, afetiva e emocional de todos os seres humanos. Como poderiam os membros de um casal cujo contrato esta baseado na fidelidade mútua duvidarem perpetuamente da fidelidade alheia 'ad infinitum'??? Ou os filhos duvidando 'ad aeternum' quanto a legitimidade de seus pais?? E todos duvidando a respeito das bulas de remédio, das placas de trânsito ou dos manuais de instalação???

Felizmente o 'Sócrates' do ceticismo ainda não apareceu entre nós.

Como aquilo que é necessário por natureza pode comportar a impossibilidade de ser posto em prática? A pergunta fica registrada esperando uma resposta.

De fato o próprio Sextus admite que: "O cético não conduz a sua vida de acordo com a teoria por ele proposta ( tão longe quanto isso, ele está inativo), mas no que respeita à regulação da vida que ele é capaz de aspirar por algumas coisas e de rejeitar outras como se fossem o que são; isto porém de modo não filosófico mas segundo o costume comum. " (XI, 165).

Isto quer dizer que 'para bem viver' o cético deve acompanhar as apreciações ou juízos tais como formulados pelo senso comum; o qual enquanto 'pensador' aborrece e despreza!!! Noutras palavras, que seu 'modus vivendi' deve ser não filosófico, tomando por verídico aquilo que tende a repudiar como aparente mas que por exigências da vida prática não pode tratar como aparente sob pena de mal viver... destarte acomoda-se o cético as opiniões das massas sejam elas quais forem sem fazer caso da veracidade...

Implica pois o ceticismo numa recusa 'aprioristica' ao ato de filosofar ou seja de formular criticas ao senso comum, aderindo ingenuamente a ele por uma questão de impossibilidade prática do ponto de vista filosófico. E para nosso homem não há qualquer diferença significativa entre a ciência e o misticismo ou entre os discursos de um Copérnico e dum Lutero; as afirmações de um Spurgeon e de um Darwin... entre as constatações de Isaac Newton e as de um astrólogo qualquer...

Conclui-se pois que os verdadeiros céticos são aqueles que ocupam as celas ou aposentos de nossos hospícios e sanatórios; a exemplo de Franco da Rocha e Itapira. Todavia ninguém considera tais infelizes como filósofos ou intelectuais de vanguarda.

E no entanto há séculos que as recentes teorias filosóficas tem encontrado guarida em tais instituições terapeúticas. Ali apenas há quem pretenda de tudo duvidar tornando-se um risco para si e para os demais membros da sociedade. Há ali quem duvide de sua própria existência. Quem julgue ser outro, como Napoleão ou Jesus Cristo. Quem creia estar morto... Quem como Nietzsche acredite ser deus... e assim sucessivamente. Sintomático que alguns catedráticos da pós modernidade, do irracionalismo, do caos e do nihilismo, tenham proposto a libertação de tais pacientes questionando se não seriam mais normais do que a maioria de nós!!! Imbecis adormecidos no 'sono do dogma' e da convencionalidade...

Levemos a indagação mais adiante e questionemos se tais pacientes não são verdadeiros pensadores e se de fato não merecem ocupar uma catedra na USP ou na Sorbonne; a catedra de Filosodia moderna e contemporânea... Afinal idealistas, relativistas, solipsistas e céticos a rodo sobejam em tais lugares; transplantemos de imediato nossos energúmenos para os gabinetes de Filosofia onde saberão explanar com maestria a respeito dos avoengos Górgias, Protágoras, Pirro, etc e dos tetranetos: Berckley, Hume, Kant, Nietzsche, Heidegger, etc

Podemos pois classificar o ceticismo, se capaz for de por em dúvida toda miséria e sofrimento que há neste mundo - apelando as decantados conceitos de acatalepsia e ataraxia - como mais um fruto amargo e podre engendrado por esta nossa sociedade de consumo fundamentada em relações ou melhor em opressões de ordem econômica que precisam ser ocultadas... ou como mais um tipo de fuga face uma realidade social indesejável que percebemos não ser fácil transformar; e portanto, exercendo funções análogas aos do alcool, da bebida, da droga, do sexismo, do futebol, do fanatismo religioso de outras tantas formas de alienação catalogadas por K Marx e seus discípulos.

Nega o cético por uma questão de vontade, justamente porque não deseja preocupar-se; cuidando apenas em viver folgada ou despreocupadamente enquanto fenômenos ou eventos bastante desagradáveis acometem a maior parte da pobre humanidade.

Diante de tudo isto resta uma indagação: Que benefício concreto o ceticismo crasso seria capaz de comunicar a uma sociedade como a nossa ou a vida???