segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Criteriologia - A fé religiosa como critério da verdade

M - A que conclusão havíamos chegado durante o último diálogo???

D - Havíamos constatado que os sentimentos não podem ser considerados como critério apropriado para discernir qual seja a verdade.

M - Cumpre agora dar seguimento a nossa investigação e examinar os demais critérios propostos.

D - Segundo Agostinho, Lutero, Calvino, Montaigne, Jacobi, De Bonald, Maistre, Lammenais, Bonetti, Donoso Cortês, etc o supremo critério da verdade corresponde a fé ou a uma Revelação sobrenatural comunicada por Deus.

Disto decorre que o intelecto seja 'impotente' para aquilatar a verdade.

Deus no entanto comunica ao homem tudo quanto precisa saber ou tudo quanto seja relevante.

Assim o que Deus comunica através do livro (biblismo/protestantismo) ou da Igreja (agostinianismo) é de fato verdadeiro e indubitável enquanto que as demais informações são apenas verossímeis e em certa medida sempre duvidosas.

Eis porque, este padrão religioso tem se mostrado sempre hostil a teodiceia enquanto especulação puramente racional a ponto de denuncia-la em termos até mais enfáticos do que Kant.

Alias o próprio Kant, ideologicamente falando, parece não estar inume ao influxo desta corrente na medida em que bebeu da tradição cultural Luterana.

Consta inclusive que ele expressou-se nos seguintes termos: "Assim debilitamos a razão para enaltecer a fé."

M - Ignoro em verdade se tais palavras foram mesmo proferidas por Kant, reconheço todavia que exprimem adequadamente seu modo de pensar.

Até onde nos é dado saber a 'Crítica da razão pura' não foi publicada 'a esmo' correspondendo antes a uma espécie de 'necessidade' produzida nos círculos intelectuais da Alemanha pela polêmica travada entre Lessing, Jacobi e Mendelssohn a respeito da metafisica racionalista ou mais precisamente da teodiceia - em especial a Spinoza mas também, em certa medida as de Leibnitz/wolff e Descartes - e o Deus da Revelação ou da fé.

Partindo de Descartes e Leibnitz é assaz sabido por todos que Spinoza (que posteriormente serviu de apoio a teodiceia Hegeliana) elaborou uma teoria panteísta ou no mínimo panenteísta (e do nosso ponto de vista em grande parte válida) que escandalizou não apenas a sinagoga mas a cristandade judaizante e tosca como um todo. Esta teoria foi adotada por Lessing o qual buscava de algum modo concilia-la com os principais dogmas do Cristianismo...

De modo geral o próprio Spinoza havia declarado em alto e bom som que seu Deus não correspondia a ideia de transcendência absoluta atribuída aos patriarcas hebreus> "Meu Deus não é o de Abraão, Isaac e Jacó..." são palavras suas...

A Lessing no entanto, como gênio que era, ocorreu a feliz ideia de construir uma síntese semelhante a que Aquino havia construído na Idade Média; embora muitos - como o Pe Lucien de Laberthonière por exemplo - que o 'deus' de Aristóteles jamais haveria de corresponder ao Deus enunciado por Cristo nos Evangelhos.

Para toda a gente tacanha o Deus de Jesus deve corresponder sempre e necessariamente ao deus dos patriarcas ou dos antigos israelitas... então como Aquino, que fora anatematizado pelo chanceler Estevão Tempier de Paris; Lessing teve de fazer frente ao 'fogo' cerrado dos luteranos tradicionais, dentre os quais Jacobi.

Para este Jacobi a especulação puramente racional a respeito da natureza divina conduzia sempre e necessariamente a impiedade de Spinoza ou seja ao panteísmo/ panenteísmo classificado por ele (como a própria teodiceia hegeliana e a teologia do processo) como puro e simples ateísmo ou - como gostam de dizer os ateus - um ateísmo disfarçado.

Diante da argumentação rigorosamente lógica ou racionalista de Spinoza concluiu Jacobi a favor de Lutero contra Aristóteles (O qual para Lutero não passava de um demônio) e Aquino, cuja 'Suma...' fora mandada queimar pelo 'deformador' alemão juntamente com a Bula do papa e as decretais... Para Jacobi a obra de Spinoza era prova contundente de que Lutero não havia errado e que a razão humana é de todo impotente para aquilatar a natureza divina.

Tendo morrido Lessing durante o correr das discussões, foi substituído por um seu admirador, o judeu Mendelssohn que na esteira de Aristóteles e Aquino, Descartes e Leibnitz susteve a capacidade do intelecto para demonstrar a existência de Deus...

Assim foram correndo rios e mais rios de tinta.

Em meio aos quais o luterano Immanuel Kant ergueu a pena em favor de seu confrade ou irmão Jacobi.

Kant e Jacobi nos reportam sempre a tradição anti racionalista vindicada por Lutero, as quais em certo sentido chegam a Ockham e enfim a Agostinho de Hipona (vertente com que se identifica o próprio Montaigne) o qual como sabemos recebeu seu pessimismo antropológico dos maniqueus...

Prolongamento do agostinianismo ou melhor do maniqueísmo; assim consideramos todas estas tentativas desastrosas de abater a razão para sobrepor-lhe a primazia da fé.

D -  De nossa parte convém averiguar se a fé de fato faz jus ao 'status' de critério que lhe é atribuído.

M - Não questiono aqui a simples possibilidade de que a fé, compreendida como os Santos Evangelhos ou a tradição da Igreja corresponda a um conteúdo válido no que diz respeito a esfera da religiosidade.

Agora que corresponda ao supremo critério porque deva ser aquilatada toda espécie ou tipo de verdade parece-me inexato.

D - Por que?

M - Porque até onde nos é dado saber a própria esfera da religiosidade, da fé, dos registros pretensamente sagrados, etc incorpora certos conceitos adrede confeccionados sem discutir a respeito do significado dos mesmos. Noutras palavras; ela parece receber - da natureza ou da profanidade - certo conteúdo já pronto supondo que o mesmo seja verídico sob pena de seu próprio discurso perder o sentido.

É impossível compreender o discurso religioso a menos que suponhamos que ele mesmo, até certo ponto, reconhece a existência e a validade dum discurso exterior a si.

D - Penso ainda não ter compreendido bem.

M - Que o discurso religioso não pretenda demonstrar absolutamente tudo, supondo que alguma coisa 'sobre' ou reste para a natureza racional, infere-se a partir de sua própria base que a divindade. Pois enquanto revelação depende a fé de um Ente ou Ser revelador responsável por comunica-la ao gênero humano.

Ora nem a escritura Cristã e tampouco a muçulmana e a judaica (Evangelhos, Corão e Tanak/Mikra) contem dissertações a respeito da existência de Deus, dando sempre sua existência por admitida ou suposta.

Donde se infere que a fé na comunicação pertinente a natureza e a vontade de Deus, admita ser precedida por um tipo de demonstração racional a respeito de sua existência.

Neste caso a fé religiosa teria seu ponto de partida num elemento de natureza distinta que corresponde a razão ou a teodiceia; e bem poderíamos dizer que a base ou o fundamento mais remoto da fé é racional. Tal o conceito de fé esclarecida, no caso esclarecida pela reflexão ou especulação metafísica.

Quanto aqueles que afirmam o contrário e sustentam que a própria existência de Deus fica de fato subentendida mas igualmente em termos de fé - os fideístas ou tradicionalistas - ignoram ou são incapazes de perceber que se a fé parte da fé ou se esgota em si mesma estamos diante de um círculo vicioso.

D - Não percebo como.

M - Pois afirmamos crer na comunicação de Deus por crermos na existência de Deus e ao mesmo tempo cremos na existência de Deus porque cremos na comunicação de Deus. Cremos que se comunica porque existe e que existe porque se comunica...

D - De fato este tipo de fé parece ser demasiado ingênua ou cega.

M - Nós no entanto sustentamos que embora a comunicação ou Revelação de Deus pertença ao domínio da crença e da autoridade designada, a demonstração de sua existência pertença ao domínio natural da razão.

D - Para tanto deveríamos, no mínimo, demonstrar que certo discurso religioso reconhece as prerrogativas naturais da razão.

M - Tomemos por exemplo o livro dos Cristãos que é o Evangelho (narrativas de Mateus, Marcos, Lucas e João) neles nos deparamos com afirmações semelhantes a esta:

"O verbo se fez carne."

Parte alguma das escrituras no entanto dissertam a respeito do que seja Verbo ou do que seja carne; supondo a existência de conceitos externos a si, no caso válidos e verdadeiros para que o discurso faça sentido.

Nem podemos ignorar que grande parte da Escritura seja formada por juízos: alguns de essência outros de valor...

"Assim a mostarda se converte no maior arvoredo destes nossos campos." declara Jesus Cristo pretendendo com isto exarar uma verdade.

Noutro passo declara ainda: "Deus só é bom."

Mas não expõe o significado da própria bondade.

"Deus é amor." declara o apóstolo.

Mas não define o que seja amor.

Assim recebe a escritura diversos conceitos quais sejam: maior, menor, bondade, justiça, amor, espírito, etc
sem jamais explicita-los no entanto.

Eis porque há tantos e tantos léxicos e enciclopédias bíblicas - assim Russel N Champlin, Gerard Kittel, Mackyntosh/Strong, Schaff, Wicleff, Viney, Brucce, Scott/Lidel - tendo em vista esclarecer o sentido das passagens do Evangelho e do Novo Testamento. Também os judeus mais esclarecidos que desejam compreender com exatidão dos discursos de seus mestres recorrem a obra de Marcus Jastrow enquano os muçulmanos possuem seus Sahis de Muslin, Bukhari, Dauwad, Ibn Maja e Termidi; além dos Tafsir e das Thadib de Al Tabari e das obras de Qutaybah, Al Tabarani e outros.

Ora essas definições todas das quais a fé depende - sob pena de tornar-se incompreensível - mas que não procedem da fé, dão por suposto que o intelecto humano seja apto para apreender certas verdades primárias ou elementares.

Ademais todos os juízos contidos nos livros sagrados remetem como já advertimos noutro capítulo: ao Ser, ao mundo externo e ao princípio de contradição.

D - Sou levado a concordar em gênero, número e gráu.

M - Nem devemos nos esquecer que os escritos dos apóstolos recomendam que o culto prestado a Deus seja de natureza 'racional'; além de incitar-nos a fornecer - aqueles que nos perguntarem - as 'razões' de nossa boa esperança; e nem vemos que uma e outra coisa sejam possíveis caso estejamos de acordo com Agostinho e Lutero a respeito da incapacidade da Razão humana.





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