sábado, 14 de março de 2009

Respostas as objeções formuladas pelos céticos.

D - "Clitomaco afirma jamais ter conseguido saber qual a opinião de Carneádes por meio de seus escritos. É por isso que Epicuro sempre foi ambiguo nos seus e que Heráclito grangeou o título de o obscuro... por isso Heráclito grangeou a admiração dos tontos, pois os tontos amam o enigmático como se fosse sinal de profundeza...a obscuridade é a moeda dos filósofos que destarte equivalem a prestidigitadores." Montaigne, iden 239

M - Efetivamente o problema da linguagem e da formulação dos conceitos tem sido bastante explorado pelos céticos de toda casta.

Tal apreciação teve seu ponto de partida com os sofistas da geração anterior a Sócrates.

Para os quais a verdade ou era inacessível aos mortais ou relativa a cada um deles.

E não devemos nos admirar disto uma vez que a maior parte deles era constituída por professores de retórica e gramática.

Seu ofício ou 'missão' era formar homens eloquentes com o objetivo de suprir a demanda política e jurídica, representadas pela Agora e o Aeropago. Cujas preocupações por sinal nada tinham de metafísicas...

Não estavam pois tais mestres preocupados com as coisas em si ou com a verdade, mas com as sensações estéticas que as palavras ou melhor os jogos de palavras seriam capazes de suscitar nos ouvintes. Importava para eles falar bonito ou discursar eloquentemente tendo em vista a persuasão das massas...

Eis porque tendiam a confundir a sabedoria, inclusive a moral, com tais jogos de palavras, totalmente desprovidos de conteúdo objetivo ou vazios de significado. Aqui temos a chocadeira do nominalismo...


O próprio Sócrates sentindo-lhe o 'ferrão' e desejando lançar das bases do pensamento futuro, declarou guerra ao senso comum tendo em vista a elaboração dum vocabulário propriamente Filosófico.

Eis porque costumava dizer: "Se queres dialogar comigo formula muito bem os teus conceitos." sabendo que  o entendimento comum supõe uma linguagem ao menos em parte comum.

Ao tempo de Sócrates porém foi um de seus 'sucessores' Aristóteles que levou a cabo tal empresa em termos definitivos. Partindo obviamente da herança legada por Platão seu mestre, o qual, como todos sabem, durante a flor da juventude, fora ouvinte do filho de Sofronisco.

Aristóteles no Organon e na Metafísica criou por assim dizer uma série de conceitos e expressões que tem sido empregados até nossos dias por alguns filósofos.

Sem embargo de todo este trabalho elucidativo não podemos negar que outros tantos pensadores esforçaram-se por forjar um tipo de pensamento artificioso e obscuro, cujo exemplo maior temos em Heráclito de Éfeso... Dentre os modernos Kant tem sido alvo de inúmeras críticas neste sentido. As quais no entanto temos por falsas e ilegítimas uma vez que ele, via de regra, quis servir-se dos conceitos e expressões 'batizados' por Aristóteles... 

Todavia Kant não é obscuro mas apenas e tão somente complexo ou díficil, como Aristóteles; com o qual alias dialoga. Neste caso o problema não esta no autor mas no leitor acomodado ou inepto...

Nietszche pelo contrário quis ser obscuro e obscuramente compôs o seu 'Zaratustra'. Hegel e Heidegger ao menos em algumas de suas obras, incorreram no mesmo vício.

Aqui concordamos ao menos em parte com Montaigne concedendo muito pouco valor a tais filosofias, procedam elas de Heráclito, Nietszche ou Heidegger. Tais exemplos no entanto constituem um capítulo a parte na História da Filosofia... e não o livro todo. Ao menos que excluamos Parmênides, Sócrates, Platão, Aristóteles, Aquino, Descartes, etc Ora nós fazemos causa comum justamente com estes; assim sendo as acusações dos antigos e/ou modernos não nos atingem e tampouco a Verdade em si mesma.

Pois como poderia ser a Verdade atingida justamente por aqueles que se desviam e afastam dela tomando outros rumos???



D - Suponho que desde então - do tempo dos sofistas - semelhante opinião tenha desaparecido até ser reeditada por Montaigne?

M - Tal opinião a respeito da linguagem, de sua ambiguidade, variabilidade e consequente incapacidade para expressar qualquer coisa de estável (como a verdade) foi retomada ao menos em parte pelo Bispo Agostinho de Hipona em seus primeiros dialogos nos quais a influência da nova acadêmia ainda se faz sentir.

Posteriormente Guilherme Ockan - que sendo franciscano herdou a tradição anti intelectualista dos agostinianos  - emitiu um opinião demasiado temerária a respeito dos universais ou conceitos alegando que não passavam de palavras ou códigos linguisticos sem maior significado. Ele partiu da repisada crítica anti platônica segundo a qual os conceitos inexistiriam em si mesmos...

Ignorando a solução proposta pelo estagirita segundo a qual os conceitos embora inexistindo em si mesmos como entidades reais (aqui o realismo ingênuo de Platão) existiriam de fato nos seres ou sujeitos a que dizem respeito.

Sua teoria recebeu o título de nominalista, porque aqui nada há de objetivo para além dos nomes e jogos de palavras... Ockan foi tributário de Agostinho e dos Neoplatonicos exercendo uma ação demolidora sobre a filosofia de então e antecipando as teorias de Hume e Kant.


D - Dizem que a teologia fideista de Lutero é tributaria do ockamismo.

M - As convergências são admiráveis pois tanto Agostinho, quanto Ockan e Lutero desesperaram já da linguagem, já do intelecto para mergulharem de cabeça no fideismo que é um ceticismo invertido. Estamos pois diante duma tradição intelectual ou melhor anti intelectual comum que vai de Agostinho a Ockan pela via franciscana, que por Ockan chega a Lutero e que de Lutero chega a Kant, cujos pais eram luteranos... As raízes desta tradição se encontram na nova acadêmia e no neoplatonismo; enquanto produtos duma F grega já em estado de declínio ou melhor dizendo em estado de decomposição.

Como afirma Renan muitos dos que desconfiam já da razão, já da percepção, já da linguagem, por paradoxal que possa parecer mergulham de cabeça na fé religiosa. E tornam-se depositários duma fé completamente cega.

Céticos há que duvidam de tudo menos da fé ou da religião. Este meio-ceticismo é tão perigoso e funesto quanto o ceticismo clássico pois produz apenas gente fanática e selvagem. É uma mutilação do homem como outra qualquer...

D - E após Ockan que rumos tomou o nominalismo?

M - Nietszche partindo de Kant; ultrapassa-o no que diz respeito ao problema da verdade e assim se expressa: "Os senhores me perguntam quais são os principais vícios dos filósofos?... Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio contra o provisório e o inacabado , seu hermetismo, etc Eles acreditam que desistoricizar uma coisa, torná-la uma 'sub specie aeterni' e construir a partir dela uma múmia, é uma forma de honrá-la. Tudo o que os filósofos tiveram nas mãos nos últimos milênios foram múmias conceituais; nada de efetivamente vital... Eles matam, eles empalham, eles esterilizam quando adoram, esses senhores idólatras de conceitos. Eles trazem um risco de morte para todos, quando adoram. A morte, a mudança, a idade, do mesmo modo que a geração e o crescimento são para eles objeções – ou até refutações... Agora, eles acreditam todos, mesmo com desespero, no Ser. No entanto, visto que não conseguem se apoderar deste, eles buscam os fundamentos pelos quais ele se lhes oculta. “É preciso que uma aparência, que um ‘engano’ aí se imiscua, para que não venhamos a perceber o ser: onde está aquele que nos engana?” “Nós o temos, eles gritam venturosamente, o que nos engana é a sensibilidade! Esses sentidos... nos enganam quanto ao mundo verdadeiro. Conclusão: conseguir desembaraçar-se do engano dos sentidos, do vir-a-ser, da história, enfim da mentira. A História não é outra coisa senão uma crença nos sentidos, uma apologia da mentira."

E vira de ponta cabeça o kantismo: "Também Heráclito foi injusto com os sentidos. Estes não mentem nem como crêem os Eleatas, nem como ele o acreditava – eles não mentem de forma alguma. O que nós fazemos com seus testemunhos é que introduz pela primeira vez a mentira. Por exemplo, a mentira da unidade, a mentira da coisicidade, da substância, da duração... A “razão” é a causa de falsificarmos o testemunho dos sentidos. Até onde os sentidos indicam o vir-a-ser, o desvanecer, a mudança, eles não mentem... Mas Heráclito sempre terá razão quanto ao fato de que o Ser é uma ficção vazia. O mundo “aparente” é o único: o “mundo verdadeiro” é apenas um mundo acrescentado de maneira mendaz..."

Pois segundo afirma o defeito não esta nos sentidos ou na percepção dos objetos particulares, mas na razão com sua tendência mórbida a abstrair e construir conceitos de natureza universal ou comum.

A princípio o professor de Silz Marie professando uma espécie de relativismo histórico/cultural reconhece ao menos a existência real dos objetos percebidos; posteriormente no entanto, reverte a posição de Protágoras segundo a qual tudo quanto há são interpretações individuais de signos, jogos de palavras, discursos, intencionalidades e nada mais, assim já estamos em pleno terreno do relativismo/perspectivismo, do subjetivismo/voluntarismo tão caros a germanidade...

Kant oculta o se enquanto Nietzsche simplesmente descarta-o como uma construção artificial...

Desde então, como dizia Heidegger - outro pupilo de Agostinho - não mais se cogitou a respeito da verdade ou da metafísica (no sentido aristotélico) nos podromos da 'alta filosofia', que é como a filosofia alemã se auto avalia perante a tradição clássica que herdamos dos antigos gregos (no caso baixa filosofia). Também o francês Sartre, rompendo com a tradição comum a Cousin, Brehier, Brunschwick, Lalande, etc afirma que a busca pelo 'Ser' chegará ao fim uma vez que segundo declarava: 'A existência precede a essência.'...

Entrementes o nominalismo ou verbalismo atingiu o status de ciência sob a designação de semiótica (Saussure). A semiótica diz respeito a analise dos signos ou representações verbais, ou seja, dos jogos de palavras... grosso modo podemos dizer que quanto a ela mesma não há problema algum, o problema são aqueles pensadores que - como Foucault e Deleuze - reduzem toda questão Filosófica a semiótica ou seja a linguagem ou ao discurso, descartando qualquer indagação em torno do ser ou da objetividade dos conceitos.

Tendo diante de si esse pagode, ou melhor essa Babel na qual ninguém se entende - porquanto cada teórico produz sua própria linguagem e porfia-se em ser mais enigmático do que os demais - surgiu Wittgenstein, qual novo Sócrates, pretendendo examinar ou reexaminar os termos ou expressões filosóficas clássicas e decretando que tais eram os limites da investigação filosófica para além dos quais não era lícito passar; tão denso que era o cipoal... e os riscos de perder-se nele.

Para compreendermos a dimensão do problema causado pela filosofia confusionista e bastarda dos alemães, - excetuando evidentemente Trendelenbourg e Brentano; dentre outros - bastar-nos-ia recomendar a leitura do 'Vocabulário técnico...' de Lalande cujo objetivo é deslindar tais conceitos e expressões. Abagnano, Gusdorf e Ferrater Mora também contem ampla matéria a respeito; bem como os 'Manuais' de Brehier, Jolivet, Sciacca, Morente, Julian Marias e V de Magalhães Vilhena; dentre outras obras consagradas.

D - Vossa graça, parece particularmente infensa a filosofia alemã, porque?

M - De fato, ao contrário de certo ideal estereotipado ( Que afeta um tipo de imparcialidade hipócrita) sou obrigado a confessar minha má vontade face as teorias filosóficas procedentes da Germânia.

Grande parte das censuras referentes a obscuridade, vacuidade e artificialidade do vocabulário filosófico - como as que foram expressas por M Montaigne - tornaram a corporificar-se, por assim dizer, na moderna filosofia alemã post kantiana cujos ícones tão bem conhecemos uma vez que possuem a chancela da moda.

Não julgue porém, caro discípulo, que tais acusações sejam gratuitas ou sem razão de ser.

Encontra-mo-las a rodo e enxovia nas obras dos citados filósofos, a ponto de cremos que nas horas vagas dedicavam-se a trocar insultos e xingamentos (como seus ancestrais 'reformadores')...

Hora é Nietszche que achincalha Schoepenhauer, hora são Hartmann e Schoepenhauer que lançam pedras a Nietezche, hora é Paulus que mimoseia Hegel, mais além são Feuerbach, Stirner e Strauss que trocam deferências, e assim cada qual acusa seu rival de sofismar afetando um linguajar pomposo e repolhudo que ninguém é capaz de decifrar.. Cada pensador alemão encarava seu oponente como o mais perfeito escamoteador da face da terra. Assim sendo tais sistemas idealistas em sua maior parte, individualistas e subjetivistas até o solipsismo crasso, associavam-se, confundiam-se e sucediam-se uns aos outros como o cadaver de Safira ao de Ananias seu esposo aos pés do apóstolo Pedro...

Destarte, como o surgimento das seitas protestantes no contexto Cristão contribuiu poderosamente para a afirmação do ceticismo religioso na Europa e na América e a aparição de diversas seitas filosóficas da antiguidade havia preparado os caminhos para o triunfo do ceticismo intelectual, para a afirmação do misticismo e para a destruição do 'mundo antigo'; os inúmeros partidos, grupos, escolas e correntes em que a Filosofia cindiu-se no decorrer dos três últimos séculos tem contribuído poderosamente para apartar os homens tanto da reflexão filosófica quanto da busca pela verdade, seja ela ontológica, ética ou estética...


D - Deste jeito até parece que o Mestre dá razão a Montaigne...

M - Caso negasse tais desencontros em matéria de linguagem ou conceitualização não estaria sendo honesto  comigo mesmo.

De fato ao menos em parte M Montaigne é assistido pela razão e pela justiça e não posso discordar dele; no entanto... apenas em parte.

Pois como de costume nosso autor examina apenas um dos lados, o que melhor convém, tendo em vista a demonstração de sua tese e confere-lhe um peso demasiado grande. E este defeito de argumentação acaba conferindo ao problema uma dimensão ou abrangência que por si só não possui, e a inferências descabidas como a justificação do ceticismo crasso.

Admito que analisando apenas o vocabulário dos sofistas antigos ou dos alemães modernos, ficamos como que aturdidos e petrificados diante da confusão reinante e desistimos de poder compreender qualquer coisa.

Nietzsche emprega uma linguagem, Hartmann outra, Wundt outra, Mach outra, Hiddeger outras, e assim por diante... Como num autêntica Babel em que ninguém se entende. Daí existirem já 'dicionários' de Nietzsche, de Kant, de Heiddeger, etc tendo em vista facilitar o entendimento de suas respectivas obras.

Cada um destes honoráveis senhores construiu para si como que um feudo a parte - em seu gabinete - e seus legítimos discípulos e sucessores interpretam-nos como querem, inaugurando cada qual sua seita... basta lembrar o empirismo inglês (de Bacon, Hume, Spencer, etc) empirismo francês ou positivismo (de Comte et aliae) e o empirismo alemão (de Dilthey e cia) cada qual com suas 'peculiaridades'. Em termos de Kantismo temos os de Cohen, Natorp e Cassirer i é de Marpurgo, que priorizam a "Razão pura", os de Windelband, Rickert e Troeltsch i é de Baden, que priorizavam a "Razão prática", os de Leonard Nelson e os franceses de Ch Renouvier... enfim Kant para todos os gostos.

De Natorp o aparelho conceitual Kantiano passou a Husserl, assentando as bases da fenomenologia e daí a Emil Lask que é o 'elo de ligação' entre Husserl e Heiddeger. Todas estas correntes relativistas e subjetivistas correspondem a ulteriores transformações ou desenvolvimentos porque passou o kantismo. A partir de Ed Bernstein (austromarxismo) parte dos marxistas abandona o materialismo dito dialético e aderem a uma epistemologia neo kantiana, o que de certa maneira correspondia já aos anseios de Lange e Cohen... atualmente o Kantismo tem sido reeditado por Peter Strawson e Jean Luc Nancy, recebendo de cada um deles uma coloração diferente.

Estamos pois diante dum mercado ou duma feira e vos asseguro que rios de tinta e montanhas de papel tem sido gastas com o intuito de interpretar ou decifrar tais 'obras primas'...

E como por absoluta falta de preparo a maior parte dos estudantes e professores tem se revelado incapaz de compreende-las afirmam logo - ao invés de confessarem sua ignorância - que se trata da mais alta e refinada sabedoria... quanto aos que ousam compor alguns comentários ou exposições ainda mais obscuros e toscos guindam-se as supremas alturas e assumem as principais cátedras...

Quanto a Filosofia alemã sou obrigado a concordar que se tais cursos fossem fechados e substituidos por cursos científicos - especialmente nas áreas de biologia, psicologia e sociologia - a sociedade seria amplamente beneficiada. Pois a filosofia alemã não passa de logomaquia ou verborragia inútil, passatempo de burgueses fúteis e ociosos.

Apesar disto existem outras correntes filosóficas tanto mais sérias quanto consistentes e, como tais, detentoras de um vocabulário ou de um patrimônio conceitual que remonta a Sócrates. Refiro-me ao Aristotelismo especialmente sob sua sua forma pura, mas também sob sua forma 'Cristianizada' o tomismo, se bem que esta cristianização seja mais uma platonização introduzida pelo agostinianismo e como tal uma infecção deletéria. Refiro-me ainda a filosofia do 'senso comum' de Reid, ontologia rosminiana, ao deísmo racionalista, existencialismo, personalismo, etc

Possui a escolástica um vocabulário técnico bastante preciso, objetivo e límpido e uma metodologia característica: logico-dialética.

Em seu campo e mesmo nos campos do senso comum e do marxismo as expressões, conceitos e métodos são definidos e balizados com relativa clareza, permitindo inclusive certos intercâmbios, cruzamentos ou momentos de diálogos.

Afinal trata-se duma caracteristica comum ao realismo objetivista em oposição ao idealismo subjetivista marcado pelos devaneios da fantasia e da imaginação.

Não há muito espaço nos sistemas realistas gregos ou contemporâneos para ilações frívolas e descabidas.

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