quinta-feira, 5 de março de 2009

Elementos implícitos no juizo: a afirmação do 'eu'

D - Não será o 'eu' uma construção puramente imaginária, hipotética e artificial?

M - Suponhamos por um instante apenas que você esteja equivocado quanto a esta suposição?

D - Que resulta daí?

M - Se supõe ou se equívoca é porque existe certamente, pois aquilo que não existe não pode supor ou errar. Para supor, errar, acertar, julgar, opinar e mesmo negar ou duvidar é preciso antes de tudo ser ou existir.

Porque existo se erro como posso errar ao afirmar minha existência?  Porque existo se duvido como duvidar de minha própria realidade??

"Uma vez que eu existo, ainda que me equivoque, sem dúvida alguma ao afirmar a realidade de minha existência, nisto não me equivoco." Agostinho de Hipona, in "Civita Dei" I,11

"Se duvida vive, memora os motivos de sua dúvida, percebe-se duvidando, deseja estar certo ao duvidar, pensa, sabe que pensa, julga que não deve assentir temerariamente. Quem quer que esteja duvidando, de tudo isto não pode duvidar, pois tais fenômenos são condições necessárias ao ato de duvidar e sem eles duvidar seria impossível." iden, "De Trinitate" X,14 p 45

"O homem ao pensar algo percebe que existe." sintetiza o aquinense. E com razão na medida em que o homem sabe discernir entre si mesmo e seu pensamento; Sabe que seu pensamento vive de si, internamente e portanto que existe externa e materialmente enquanto veículo, continente ou suporte de seu próprio universo mental.

Tal juízo, sem embargo, é melhor conhecido sob a fórmula cartesiana:

"Cogito, ergo sum" ou "Penso logo existo."

A qual é por assim dizer a válvula de escape do cartesianismo quanto ao ceticismo universal.

Efetivamente, levando-se em conta o dogmatismo ingênuo e tolo cultivado não só pelos medievos nossos ancestrais - que davam crédito a tudo quanto se achava escrito nos livros e que encaravam certas autoridades como infáliveis e inquestionáveis (Chegando inclusive a opor o veredito das mesmas a experiência comum e ao mundo real) - mas por boa parte da humanidade contemporânea - Que sem mais dá crédito as fanfarronices do Dan Bronw - Descartes teve de levantar a bandeira da revolução ou do iconoclasmo, alegando que todo e qualquer juízo, de afirmação ou negação, deve proceder sempre da investigação e logo que se deve suspeitar de tudo quanto não tenha sido suficientemente investigado e demonstrado.

Consequentemente susteve ele a necessidade de acautelar-se face a tudo quanto a generalidade da espécie tem tido em conta de absolutamente certo e indubitável, partindo de preconceitos gratuitos e inverificáveis; isto é, o senso comum.

Todavia, ao destruir as crendices e fábulas aceitas pelo gênero humano, concedeu-nos Descartes uma nova ferramenta ou instrumento com que ENCETAR A RECONSTRUÇÃO DO SABER: a certeza indubitável no que concerne a existência do eu ou da consciência, ponto de partida para a aquisição do conhecimento em moldes tanto mais seguros sejam reflexivos ou empíricos.

O argumento de Descartes é duma simplicidade infantil, e por isso mesmo, como dizia Jaspers, empolgante: Todos nós temos certeza de que pensamos, até mesmo o cético sabe que pensa embora tente reduzir seus pensamentos todos a dúvida... e esta certeza é imediata e pura ou como dizem outros intuitiva.

E da certeza do pensamento, comum a todos os seres, passa a certeza da existência ou do eu, pois só posso pensar porque existo e se não existisse certamente não poderia pensar.

Eis porque não atacamos nossas próprias imagens refletidas num espelho. Porque reconhecemos a nós mesmos e não duvidamos... porque sendo auto conscientes experimentamos a própria existência.

Daí: penso logo...

Penso justamente porque existo, porque existo separadamente dos objetos em que penso e porque sou senhor de minha reflexão ou atividade intelectual. Penso enquanto unidade auto-consciente de pensamento, distinta de todos os seres, penso enquanto eu.

"Assim percebo antes de tudo que tenho cabeça, mãos e pés; e todos os demais membros de que se compõe este meu corpo, que eu considerava como parte de mim ou até mesmo como meu todo... Não era pois sem certa razão que eu acreditava que este corpo, a que por direito particular chamava meu, me pertencia mais propriamente e mais estreitamente do que qualquer outra coisa: pois jamais me era dado apartar-me dele, e sentia nele e por ele, inúmeras sensações e desejos; e nas partes de que ele se compunha discernia ora dor ora prazer, mas não nas partes dos demais corpos que de mim mesmo estavam separados." Descartes in 'Meditações sobre a Filosofia primeira.'

D - logo o 'eu' existe.

M - O próprio Sextus admitiu que pudessemos construir juízos a respeito de nossa experiência interna e subjetiva a respeito de nossas sensações, sentimentos e estados afetivos. Hume por sua vez - no 'Tratado da natureza humana' - também admitia que tais noções intuitivas e imediatas fossem verídicas.

D - Não seria o eu uma série de experiências sucessivas umas as outras e artificialmente ligadas entre si?

M - Caso o 'eu' correspondesse a uma série de experiências ou melhor a cada experiência vivida pelo sujeito, jamais seria lícito empregar este termo no singular. Pois como cada experiência ou ato perceptivo distingui-se dos demais pela diversidade do objeto com que entra em contato, possuiríamos uma multidão de 'eus' distintos uns dos outros; um para cada experiência... Sabemos no entanto que ao invés de ser a própria experiência ou melhor cada uma das experiência; o eu corresponde por assim dizer a uma entidade coordenadora que sintetiza ou unifica nossas experiência distintas produzindo um tipo de conhecimento tanto mais elaborado. Intuitivamente o 'eu' é perfeitamente capaz de perceber-se como diverso de suas operações - Como a percepção e a produção do conhecimento - e de reconhecer a si mesmo como elemento diretivo de condição superior.

D - Quais as evidências favoráveis a existência do 'Eu'?

M - Penso que a evidência mais forte é justamente o fato segundo o qual as experiências distinguem-se  ontologicamente umas das outras e sucedem-se temporalmente, sem que a personalidade cognoscente fracione-se por completo. Antes o mesmo eu é capaz não só de abarcar como de sintetizar as experiências idas e vividas separadas umas das outras no tempo e no espaço... destarte em que pese a fragmentação externa - em termos de tempo e espaço - internamente o 'Eu' associa e combina os dados recolhidos conferindo-lhes certa unidade. Eis porque compreendemos que o eu transcende suas habilidades ou capacidades... Embora o 'eu' perceba-se diferente a cada etapa do processo de construção do saber não averiguamos um tipo de transformação radical que impeça-o de reconhecer-se a si mesmo ao cabo de todo processo... sabe o 'eu' que muda ao menos em parte, quanto ao conhecimento do mundo externo, ignora no entanto que mude por completo a ponto de tornar-se desconhecido a si mesmo, qual fosse uma soma de 'eus' completamente distintos.

Esta unidade coordenadora, operacional ou diretiva que transcende a capacidade/habilidade experiencial é o EU.

Um comentário:

  1. Muito bom, professor, muito bom mesmo. E como amo Descartes, só posso dizer que a exposição foi impecável.

    ResponderExcluir