terça-feira, 3 de março de 2009

Do ceticismo


Pirro de Elis




D - Que é ceticismo?

M- A palavra cético procede do Latim SCEPTICUS, do Grego SKEPTIKOS, literalmente “aquele que reflete, que indaga”, de SKEPTESTHAI, “refletir, olhar, vistoriar”, do Indo-Europeu SKEP-, “observar”.

D - E acaso observar ou investigar os fenômenos não é util e necessário?

M - Tanto a observação quanto a reflexão são procedimentos ou momentos indispensáveis a todo aquele que prentende adquirir algum conhecimento e chegar a Verdade. Ambas atitudes são vitais enquanto métodos ou caminhos que conduzem-nos a certeza, sem embargo, não é esta a determinação que lhes confere o verdadeiro cético.

D - Qual seria então a determinação que o cético empresta a tais palavras e atitudes?

M - O cético 'stricto sensu' faz da observação ou da investigação um fim em si mesmo ou um fim último jamais ousando concluir, afirmar ou dizer que sabe com certeza absoluta; universalmente válida e verdadeira, destarte ele tolhe o potencial construtivo da observação recusando-se a passar para o segundo estádio, o da reflexão, e ao terceiro o do conhecimento.

D - Daí o vulgo associar ceticismo a dúvida ou a negação?

M - A associação e seu sentido pejorativo são perfeitamente válidas em se tratando deste ceticismo pretensamente filosófico ou estrito, a que nos referimos acima.

D - O senhor parece insinuar que há duas espécies de dúvida ou ceticismo?

M - Descrevemos já diversos tipos, variações ou gradações de ceticismo.

Aqui, no entanto, desejamos analisar o ceticismo gnoseológico, stricto ou meramente negativo o qual faz da dúvida um estadio perpétuo, invencível e intransponível para o intelecto humano, negando-lhe o direito de concluir e a simples possibilidade de se saber que algo é verdadeiro ou falso. Esta versão de ceticismo também recebe as designações de Sistemático, Radical ou Absoluto.

Na prática ser verdadeiramente cético consiste em abster-se de formular qualquer tipo de juízo ou predicação (Epoché) tanto afirmativa quanto negativa. Por definição o cético jamais afirma ou nega, abstem-se... este padrão de pensamento foi proposto inicialmente por Metrodoro de Quios, Diógenes de Esmirna, Anaxarco, Pirro de Elis e Timon de Fliunte e posteriormente adotado por Aenesidemus, Agripa e Sextus. Em termos de modernidade este padrão de pensamento foi como que revivido por Agripa, Montaigne, Francisco Sanches, Pierre Charron, La Mothe de Vayer, Bayle e Hume.

A respeito do patriarca da seita Metrodoro, Laércio fornece a seguinte informação: "Costumava suster que nada sabia, nem mesmo o fato de que nada sabia." in 'Vidas' IX, 58

Grosso modo os partidários desta teoria costumam empregar as seguintes expressões: ao que parece, aparentemente, provavelmente, possivelmente, talvez, acho, creio, etc evitando escrupulosamente quaisquer termos indicativos de certeza quais sejam: é, não é, certamente, sem dúvida, julgo, etc Alguns dentre eles - como Górgias, Cícero, Arcesilau, Clitômaco, Carneades e Popper - no entanto até concedem que o homem possa acercar-se da verdade, atingindo a verossimilhança, a hipótese, a plausibilidade, a opinião; jamais no entanto a certeza absoluta; tal o sentir do probabilismo...

As demais formas de ceticismo são como que doses mais fracas ou homeopáticas deste.

Há no entanto um outro tipo de ceticismo que é positivo enquanto meramente metodológico ou instrumental. Nós já aludimos a ele de passagem, mas é sempre bom repetir e insistir.

Trata-se do ceticismo cartesiano, o qual longe de ser um fim último ou uma instância final do intelecto é um ponto de partida, um estádio provisório ou caminho tendo em vista a construção dum saber tanto mais seguro e certo.

Convém dar a palavra ao próprio Descartes: "Quanto a conduta ao menos é necessário muitas vezes manter os costumes e tradições que sabemos serem incertos... quanto a verdade das coisas porém, julgo ser necessário proceder doutro modo e rejeitar, como absolutamente falso, tudo quanto pudesse inspirar a menos dúvida, a fim de ver se, após isto, NÃO RESTA QUALQUER COISA QUE SEJA INTEIRAMENTE INDUBITÁVEL." in "Discurso do método" IV parte

Trata-se pois duma dúvida construtiva que deve ser superada e não daquela dúvida mórbida que jamais sai de sí mesma.

É pois um ceticismo saudável o de Descartes, tanto para a ciência, quanto para a Filosofia e até mesmo para a crítica da religião (aqui Anton Gunther). É um por a prova que nos oferece todas as garantias exigidas pelo intelecto mais maduro tendo em vista a aquisição da verdade... uma crítica que deseja ser ultrapassada e por isso mesmo é benéfica.

D - Este tipo de atitude parece semelhante a de Sócrates.

M - Na medida em que julgamos tudo saber com absoluta certeza pelo simples fato de termos 'ouvido' ou mesmo 'lido' é natural que nos fechemos para novos tipos de conhecimentos, deixando de aprender.

E ficamos na posse de toda nossa ignorância e superficialidade.

Daí a necessidade de reconhecer a um tempo a limitação de nosso aparelho cognitivo e a outro as dificuldades implicadas em cada um de seus atos... e a consequente lentidão com que obtemos algo de concreto.

Eis porque o filho de Sofronisco costumava dizer: "Só sei que nada sei."...

Desejando salientar a desproporção existente entre o número de coisas ou objetos a serem conhecidos e o número de conhecimentos por nós obtidos, tendo em vista a complexidade do ato cognitivo.

Também o cardeal Nicolau de Cusa referiu-se a esta disparidade na 'Douta ignorância' enquanto 'Pascal' aludiu "A ignorância sábia que se percebe" enquanto princípio de nossos esforços investigativos.

D - Que quer dizer com 'complexidade' do ato cognitivo?

M - Para bem aprender e compreender deve o homem antes de tudo compreender o significado do ato cognitivo e ter em vista que sua elaboração exige um amplo e profundo trabalho educativo.

Afinal como tem salientado os kantianos e ao contrário do que imaginava Descartes, não somos seres duais ou compartimentados em sessões estanques. Pelo contrário nossa parte cognitiva esta profundamente ligada e relacionada com nossas partes volitiva (Duns Scott), afetiva (Wallon e Rogers) e emocional; as quais com relativa frequência interferem no processo. Tanto nossos temores e receios quanto nossos desejos e aspirações atuando sobre o ato cognitivo são capazes de desvirtua-lo ou de demove-lo do plano real para o plano ideal...

Daí a necessidade de todo um esforço educativo e metodológico cujo fim é promover situações psicológicas favoráveis a pesquisa ou a um ideal de neutralidade que implica a isenção de pressupostos... De modo que os objetos apenas possa 'falar' e determinar a aquisição do saber.

Como para Popper esta isenção de pressupostos em termos positivistas é utópica ou ilusória todos os nossos conhecimentos científicos; em especial as teorias, adquirem um cárater, ao menos em parte, ideológico; na medida em que correspondem a intencionalidade ideal de alguém...

Aqui oposto ao dogmatismo ingênuo de Descartes para o qual as esferas do intelectual e do volitivo seriam facilmente separáveis. Nós no entanto, postulando um dogmatismo crítico sustentamos que a separação entre as duas esferas é bastante difícil, mas, sempre possível. Daí o papel a ser exercido pela educação crítica ou científica.

D - No caso nossas críticas...

M - No momento presente nossas críticas incidirão apenas e tão somente sobre a primeira forma de ceticismo, o ceticismo gnoseológico ou estrito.

Mais a frente trataremos do empirismo e de todas as formas de positivismo.

Quanto ao cartesianismo só nos resta aplaudi-lo de pé e ovaciona-lo.

D - Como poderiamos definir o tipo de cético em questão? Seria alguém que desconfia do pensamento ou da razão?

M - A crítica consagrada a razão, ao pensamento, ao racionalismo e a metafisica procede do empirismo ou do positivismo a começar por Bacon e não necessariamente do ceticismo clássico, que, via de regra, sequer aborda o problema da razão ou da percepção reflexiva uma vez que seus adeptos sabem e muito bem que só podemos julgar o quanto captamos por meio dos sentidos. Uma vez que a razão trabalha com elementos obtidos pela percepção sensorial os céticos ortodoxos buscam cortar caminho impugnando as fontes mesmas do conhecimento.

O trabalho analitico ou sintético executado pelo intelecto pode até se excelente enquanto operações propriamente ditas. O problema é que ele trabalha com material de péssima qualidade... então todo seu trabalho esta comprometido... Seria como fornecer a estrutura ou o esquema próprio da mente impressões duvidosas e produzir conhecimentos sempre falsos. (aqui parafraseando Kant)

Por depender dos sentidos ou da sensorial percepção o intelecto labora sempre em vão...

Tem o verdadeiro cético o mérito de ir a gênese ou raiz do problema e de por o dedo no fundo da ferida mostrando toda sua profundeza e extensão.

Ele não chega a tecer quaisquer crítica a 'boa deusa' de Rousseau e de Robespierre, pois crê que sua crítica adquire muito mais peso ao ser direcionada a percepção primária, fenômeno que esta na base mesma do processo servindo de fundamento a toda dinâmica ulterior. O cético sequer precisa questionar a razão, suas críticas incidem sobre a condição do homem no mundo e mais especificamente ainda sobre nossos sentidos e os fenômenos que captamos através deles.

Observai a crítica tecida por M Montaigne em sua afamada "Apologia a Raimundo de Sebund".

O ensaista francês pouco cuida da razão, e quase todos os seus argumentos estão antes direcionados aos sentidos cuja aptidão ou capacidade ele não cessa de questionar.

Uma das pressuposições, dogmas, afirmações ou crenças do ceticismo é que nossos sentidos são de alguma forma deficientes, imperfeitos ou enganadores chegando a distorcer toda a realidade ou a oculta-la.

Nossos sentidos não foram feitos para informar-nos como julga a teoria realista mas para ludibriar-nos ou iludir-nos... Tal o veredito dos céticos.

I Kant define as coisas da seguinte forma:

A realidade, noumeno ou coisa em si esta lá.

Nós no entanto, ao percebe-lo/observa-lo aplicamos sobre ele certas categorias sintéticas a priori quais sejam o tempo e o espaço e ao fazer isto produzimos uma outra coisa: o 'fenômeno' ou a coisa dada ou percebida; a qual pela superposição de nossas categorias subjetivas de ser torna-se hipoteticamente distinta da coisa em si, do noumeno, da realidade ou da essência sempre ignorada por nós.

Ou seja ao perceber o mundo percebe-mo-lo deformado e deformado por obra e graça de nossos sentidos.

H Bergson compara nosso aparelho sensorial a nosso aparelho digestivo, o qual recebe alimentos sob determinadas formas e transforma-os em outra coisa bem diferente, i é, merda. Assim nossos sentidos digeririam por assim dizer a realidade captada, convertendo-a em qualquer outra coisa, quiçá em merda...

Importa saber que esta qualquer outra coisa não é a realidade do ser, a qual permanece sempre escondida a nossos olhos...

É como se a natureza nos tivesse pregado uma peça...

Afinal enquanto o coração cumpre muito bem sua função que é fazer o sangue circular por todos os orgãos e membros do corpo, enquanto os intestinos executam fielmente a função de excretar resíduos sólidos, enquanto os rins via de regra excretam resíduos líquidos, enquanto o estomago cumpre com sua tarefa que é digerir os alimentos, enquanto o cérebro executa suas funções de comando e assim quase todos os orgãos e partes do corpo - exceto quando defeituosos ou afetados por alguma enfermidade, o que não constitui norma ou regra geral -  os sentidos, ao invés de executarem a função que lhes seria própria: perceber ou captar a realidade do mundo externo porfiam-se em distorce-la ou seja em iludir, ludibriar e enganar o pobre ser humano...

E a razão, indo de reboque, aumenta e alarga os prejuizos pois faz com que o miserável ser humano cogite a respeito da possibilidade da certeza e da verdade, chegando a aspirar por elas e a cobiça-las... i é infectando a própria vontade com falsas esperanças, dando vezo a decepcionantes frustrações, provocando neuroses e condizido certos homens ao desespero, a loucura e ao suicídio; tal o caso do poeta Antero de Quental...

Eis porque já citado Montaigne assevera que quaisquer preocupações no que tange a verdade: metafisicas ou científicas são igualmente funestas. Bem mais lucraria o homem entregando-se ao ócio ou ataraxia a placidez da fé, ao trabalho...

Sem ter-nos de travar tantos debates e discussões em torno dos fatídicos 'ismos': evolucionismo, atomismo, reducionismo, etc ou em torno do movimento dos astros, da esfericidade da terra, da gravidade, da conservação da matéria, etc

Por outro lado, entregues a tão proveitoso ócio nada saberíamos a respeito: da circulação sanguínea, da vacina, do soro antiofídico, do navio a vapor, do trem, do automóvel, do avião, dos computadores, da Internet, etc

Eis o maravilhoso mundo com que nos brindaria o ceticismo...

Concluindo: no imaginário cético percepção e raciocinio não são qualidades a serem enaltecidas mas verdadeiras desgraças. Digna oferta das Erínias ou deidades infernais.

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